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País tropical, mas civilizado

  • Foto do escritor: redepsicoterapias
    redepsicoterapias
  • 20 de abr. de 2013
  • 4 min de leitura

Crianças de sete e oito anos estavam em uma aula de música. O professor cantava, acompanhado delas e do violão. A aula corria animada, cantoria alta às 8:00 da manhã.

“Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. (...) Eu tenho um fusca e um violão. Sou brasileiro e tenho uma amiga chamada Teresa.”

Algumas crianças insistiram em falar “flamengo”, “nega”. O professor as corrigiu. Ali na escola eles são brasileiros e a Teresa é uma amiga. As crianças não podiam mais ser Flamengo, nem terem outro time de futebol. Terem uma nega Teresa, então, nem pensar. Por que isso?

As crianças recebem, na escola, os saberes técnicos, os valores e as regras de conduta que a sociedade quer que se reproduzam. Além disso, as características pessoais de um diretor ou um professor, e o que eles pensam sobre a cidade, o bairro e os lares, e sobre os hábitos e a cultura das pessoas distantes e próximas, aparecem na escolha e na apresentação de conteúdos, nas conversas, orientações e broncas deles às crianças. Aquela versão para País Tropical foi cantada em uma escola de um bairro de classe média, no Rio de Janeiro. Se pudermos traçar um perfil do modo de ver as coisas, e de viver, da classe média, diríamos que ela gosta de estar sempre bem informada e dar a sua opinião nos meios de comunicação, que ela busca intelectualização e participação política, e consumir, sem ser insensível com as questões sociais. Ela é civilizada. Norbert Elias descreve as sociedades no processo de tornarem-se civilizadas. Nelas, o Estado passa a monopolizar o uso da violência física, retirando do indivíduo muito da possibilidade em infligi-la aos outros, e de inspirar medo neles. O individuo é autocontrolado. Seus impulsos e descargas emocionais agradáveis, forças ainda muito corporais, muito brutas, são constantemente regulados. Em todos os setores da vida individual e coletiva, as condutas se estabilizam, sofrem menos contrastes e mudanças súbitas. A educação da criança e do jovem será, então, essa “aprendizagem dos autocontroles”, constituição da “razão”, “consciência”, “ego” e “superego”, elementos de uma psicologia civilizada, e a abdicação rápida do aparato dito natural.

Em algumas sociedades, no entanto, esse autocontrole dos impulsos parece já não importar mais. Ocorre um relaxamento nas regras de conduta. Na verdade, estas sociedades já alcançaram de tal maneira um sólido padrão de conduta, e a sua internalização por parte dos indivíduos, que elas se permitem folgar a respeito de proibições. Regras de delicadeza e de tato, presentes em manuais dos séculos XVII e XVIII, dirigidos a crianças e adultos, nos parecem despropositadas. A suavidade já faz parte de nós mesmos, não precisamos desses manuais. Mas não que estejamos mais livres: nosso autocontrole agora é constante.

Somos capazes de estar diante de pessoas seminuas, em uma praia, e não nos excitarmos. Falamos, sem nenhum problema, das nossas necessidades fisiológicas. Acharíamos ridículo ver um outdoor nos orientando quanto ao melhor jeito de proceder com elas. Bem, há as propagandas da Activia, nos falando sobre o trabalho dos intestinos. Suas orientações nos parecem jocosas. Ditas como brincadeira, e não seriamente, nos divertem. É gostosa a permanência de um aspecto infantil, desse tipo de conversa entre os adultos. Por outro lado, a campanha por não se fazer xixi na rua, nos últimos carnavais, quer se fazer levar a sério. Dirige-se ao povo. O povo na rua, multidão em uma cidade moderna, causa espanto e indignação por parte da classe média, que os vê como ainda bárbaros, aqueles que não têm o corpo e a alma civilizados, e que precisariam ser ensinados nessas regras.

Aquela aula de música foi um momento para essa aprendizagem do controle dos impulsos. Contudo, os ensinamentos do professor ganharam o tom forte dos temores próprios à nossa classe média, em relação ao pobre: as imagens que ela faz do pobre é de que ele vive em festas, sem muita separação das horas de trabalho, e com muita proximidade física e desfrute sexual. O corpo do pobre no faz sentir ameaçados em nossa integridade física e moral. A ameaça é ainda maior, também, porque periga esse corpo ainda meio bárbaro, ainda muito erotizado, estimular os impulsos que reprimimos em nós mesmos.

Preocupamo-nos em ensinar às crianças a não cantarem sua torcida para um time de futebol que movimenta multidões, como é o Flamengo. A torcida para a seleção brasileira, contudo, não é mal vista. Atrizes e apresentadoras de tv falam sobre essa preferência para seu público, sem problemas. As crianças, também, não podem ter uma nega chamada Teresa. Não! Para quem está em plena aprendizagem de controle dos impulsos, não se pode permitir que cantem que têm uma nega, que tenham qualquer chance de pensar e dizer que fariam com a nega tudo o que os que têm nega fazem com elas. Em um momento em que o politicamente correto está nos educando para respeitarmos as diferenças, e a convivermos com elas em todos os lugares, acabamos pesando a mão nas proibições ao uso que fazemos de palavras como negros, gays e gordos. É como se, diante das minorias, os civilizados estivessem aquém da civilização, e tivessem novamente necessidade de rígidos controles externos, de regras bem claras e objetivas, e da ameaça de sanções. Trocamos a livre expressão dos impulsos de agressão e amor pela possibilidade de vivermos juntos, com respeito e até interesse e atração pela diferença. Mas, entre nós, o medo de tudo que cheira a incivilidade, com as nuances de sexo, ferocidade e alegria, nos faz proibir e querer excluir a presença popular. É sempre presente, no entanto, a possibilidade dos impulsos virem de nós mesmos, e, afinal, sermos mais parecidos com os outros do que gostaríamos de admitir. Aliás, a distinção entre nós e outros acaba ficando borrada. Os corpos e seus impulsos deveriam antes serem experimentados e aprendidos, do que inibidos, em uma sociedade de indivíduos que buscam a civilização, sem fugirem do fato de serem, afinal, apenas animais com uma certa mentalidade.

**Thiago Ricardo é psicólogo, atua no campo da psicologia educacional e social. Escreve na Rede Psicoterapias sobre temas cotidianos, política e meios de comunicação.


 
 
 

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