Psicologia não é caridade
- Inayá Weijenborg
- 5 de set. de 2015
- 4 min de leitura

Nos primeiros anos de faculdade de Psicologia ou mesmo na fala de psicólogos atuantes ainda ouvimos “eu faço Psicologia para ajudar os outros”. Que bom que você não faz psicologia para destruir as pessoas, seria um pouco estranho que alguma profissão tivesse esse fim, mas não podemos achar que a finalidade da psicologia é ajudar. Os pacientes sentem-se ajudados, e isso é ótimo, afinal, a sensação de ajuda ou bem-estar é um efeito - um efeito desejável. Um efeito, no entanto, não pode ser confundido com a finalidade.
Durante a vida ouvimos algumas falácias sobre nossa profissão, qualquer que seja ela (psicologia, fonoaudiologia, enfermagem, fisioterapia…), e calamo-nos por não ter paciência e energia para responder, ou por considerar que não é tão relevante. O problema é que esses absurdos proferidos sem importância hoje tornam-se o discurso corrente de um profissional amanhã, e depois de outros, e depois de uma classe inteira. Quando olhamos para trás e tentamos lembrar de quem teve coragem de discutir, contamos nos dedos de uma mão só quanto foram. Lembro-me de uma palestra no ensino médio durante uma feira de profissões no qual uma psicóloga apresentava a profissão e disse “psicologia não é para ajudar os outros, se quiser ajudar os outros, vá fazer caridade”. É a única pessoa que consigo lembrar que tratou com precisão cirúrgica uma coisa que eu nem sabia que era uma questão para a psicologia.
O que é caridade? Caridade é oferecer algo a um grupo que não possui esse algo, e cabe a esse grupo aceitar ou não. Por exemplo, separar roupas para doar para um abrigo: cada um separa as roupas que quer doar e leva à instituição que decide se vai aceitar ou não. É uma atitude que não faz mal a ninguém, muito pelo contrário, tem muito a contribuir e ajudar. No entanto, é uma posição unilateral de dar uma coisa que você tem a alguém que possivelmente não o tem; na caridade, não há escuta e nem trocas. No ato caridoso, não se pergunta o que a instituição ou as demais pessoas precisam ou querem. Deixo frisado que a caridade não é ruim, não deve ser extinguida. Os psicólogos podem fazer atos de caridade, trabalho voluntário, doações e outras atividades pelas quais se sentem atraídos por questões pessoais, mas quando eles forem exercer a profissão devem deixar essas pessoalidades de lado.
A psicologia exige uma escuta atenta porque ela sabe que não é possível enquadrar as pessoas em teorias prontas e deve se abster de julgamentos e senso-comum para ser capaz de escutar o discurso do outro. A isso devemos uma ferida narcísica de reconhecer que o psicólogo não sabe tudo sobre todos, não lê mentes e não adivinha a verdade mais íntima de cada sujeito, muito pelo contrário: o psicólogo sabe que só o paciente é capaz de produzir um saber sobre ele mesmo. Seria muito mais fácil sair supondo coisas, praticar o “achismo” (“eu acho que é isso que você está sentindo”) e catalogar as pessoas a partir de um manual, mas não é esse o papel da psicologia. A psicanálise formaliza a posição do analista dizendo que é colocar-se como uma falta, um buraco, para que o paciente sinta-se convocado a participar do seu próprio discurso como agente e protagonista e, ao dirigir a fala ao analista, sua fala volte para ele mesmo e ele ouça o que ele mesmo disse e não tinha percebido.
Para exercitar a escuta, é preciso estudo, formação, prática, vivências, e só suporta a trajetória da formação quem tem alguma questão com isso, ou seja, para quem isso faz sentido. Em outras palavras, não é todo mundo que é capaz de ser um bom psicólogo ou analista. A atuação exige, sim, algo de pessoal, e só é preciso saber o que é pessoal e o que é do paciente. Nos interesses particulares esculpimos nossa própria formação profissional, e isso não é de se envergonhar: todo trabalho oferece algo para a sociedade, sociedade essa que nos formou. Todo trabalho é inerente a trocas e é a melhor forma de organizar uma sociedade. Como todo trabalho, a psicologia deve marcar seu terreno como uma profissão, e não uma caridade. Por mais que formar-se psicólogo exija dedicação, é um trabalho remunerado, que tende a pagar as contas do profissional e atende a seus interesses particulares. Vive-se de um trabalho, mas não vive-se de caridade.
O paciente pode sentir-se melhor, sentir-se bem, feliz. É esperado. O que não podemos perder de vista é que é esperado também que ele sinta tristeza, chateação, saudade e incompletude, sendo que o importante é, independente do que ele sentir, saber fazer algo com isso. Uma terapia não garante bem-estar pelo resto da vida, mas pretende fazer com que as pessoas continuem caminhando apesar das intempéries. Tanto a caridade como um trabalho são capazes de causar transformação, mas a transformação na caridade não é estrutural. No trabalho, lidando com a falta e as falhas do mundo diariamente, é possível encontrar ferramentas para fazer atitudes revolucionárias em vez de simplesmente reformadoras. A reforma coloca remendos e tampa buracos, mas a postura revolucionária é capaz de mudar características da estrutura social para chegar a um ponto em que não seja necessário remendá-la.
Inayá AW SP, 31 de agosto de 2015

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