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- redepsicoterapias
- 30 de abr. de 2013
- 4 min de leitura
Certa vez, achei no livro de uma escola uma versão diferente da fábula A Cigarra e a Formiga, originalmente de Esopo. Todos conhecem essa estória, mesmo que com uma pequena variação ou outra: a cigarra passa os dias cantando na copa de uma árvore, enquanto a formiga trabalha incessantemente. Entre uma carga e outra, a formiga alerta a cigarra de que o inverno está próximo, e de que as árvores deixarão de produzir alimento. A cigarra fez que não deu importância, e continuou a alegre cantoria. O inverno chegou, as árvores realmente não tinham nada a oferecer. A cigarra viu-se em apuros: em sua casa não havia qualquer provisão, e estava mais fria do que nunca. Ela dirigiu-se à porta da formiga, que não abriu. A cigarra acaba morrendo sozinha, de fome e congelamento. A primavera chega esplendorosa, cheia de vida. A formiga retoma o eterno trabalho, outra cigarra vem ocupar o lugar da anterior, sempre cantando e sem trabalhar. Na versão que vi na escola, quando a cigarra vai à casa da formiga pedir abrigo e comida, a porta é aberta. Ela se aconchega e tem um bom destino.
Lembro que, quando criança, eu me assustava diante da ideia de ter que passar a vida trabalhando duro, sem poder me divertir. Caso eu parasse por um segundo para descansar, ou no limite, trocar o trabalho por uma diversão, eu não teria bom destino. O mundo era cruel, não iria estender-me a mão. Aquela moral me pegaria no fim da minha estória. Evitar isso dependia do meu esforço próprio e capacidade de me prevenir contra problemas. Isso me angustiava, mas, enfim, hoje trabalho mais ou menos duro, e volta e meia estou me divertindo. Tudo bem, quase sempre estou em situações que me dão prazer, mesmo durante estou trabalhando. Aliás, hoje há a ideia de que o trabalho bom é aquele em que você se diverte. Fazendo o que você gosta, é como se você não estivesse trabalhando. A formiga perdeu, afinal.
Estórias com uma moral, como as fábulas, são provocadoras da imaginação: “e se, quando eu crescer, eu tiver que me matar de trabalhar?”. Experimento me colocar naquela situação, e as sensações de impotência, desconforto, alívio, crueldade, injustiça, desesperança, etc, invadem-me. Mas não apenas revivo iguaiszinhos aqueles problemas: também penso em caminhos alternativos para a conclusão da estória, e em estratégias para vencer o destino. Ou ele será inexorável? Não posso dizer, mas isso não me impede de pensar novas estratégias, e desdobrar a fábula. Uma moral, portanto, pode não levar ao fim de uma narrativa, mas à sua inconclusão, na experiência e no desenrolar do fio da narrativa na imaginação das crianças. E dos adultos, também.
Nem sempre lemos os livros com essa capacidade imaginativa. Nem sempre lemos a nós mesmos, dessa maneira. Nossa interpretação dos textos é muito literal: a cigarra não quer nada, a formiga é cruel, mas prevenida. Não haverá solução para o caso da cigarra. O mundo é de quem se esforça e sacrifica, e pronto. Se esses leitores estivessem na pele da cigarra, aí mesmo que não trabalhariam, nem se fosse com prazer, pois o não trabalho é o que está escrito para esta personagem. E jamais ousariam bater na porta da formiga. O seu triste fim também já está escrito. Se fossem a formiga, não estenderiam a mão para a cigarra, seja durante o próprio trabalho, para acompanhá-la numa breve dança, seja para ajudá-la com alguma coisa. O trabalho dessas pessoas seria duro de verdade, um destino não muito melhor que o da cigarra, se pensarmos bem. Nunca poderia ser mais suave. Esse leitor não teria cabeça para ver com a cigarra como ela e ele poderiam inventar um trabalho feliz. A leitura literal, que não conversa com a moral, e acaba sendo moralizadora, da fábula e de si mesmo, não vê alternativa para a definição do perfil dos personagens, para as consequências dos atos deles, muito menos para uma negociação com seu comportamento. Não vê solução para um mundo em que ou se é feliz ou se é triste, ou vagabundo ou trabalhador, ou vivo ou morto. Seremos eu e você a vida toda, sempre iguais a nós mesmos, num mundo sem mudança.
Foi para estes leitores que se escreveu o final docinho para A Cigarra e a Formiga. A formiga ajuda a cigarra, elas passam um inverno gostoso, e, na primavera, tudo volta a ser como antes. Ou talvez a cigarra tome jeito, e passe a pegar no pesado. É difícil pensarmos diferentemente as coisas. Além disso, volta a meia pensamos de uma forma desanimadora demais. Então vem um editor de livros, e pensa nisso: “O mundo precisa de trabalhadores motivados! E precisa de mais solidariedade. Pronto, agora a estorinha vai parar de assustar as crianças. Vamos tirar a moral! Pronto, já que as pessoas lêem literalmente as narrativas que colocam na frente do nariz, deixamo-las do jeitinho que queremos que o mundo seja feito. Pois, como essas pessoas acreditam nessas estórias, desde crianças, elas as cumprirão à risca.” Podemos não ter imaginação para brincar com a primeira versão, ma, pelo menos, não ficaremos tão desanimados e sem esperança!
Criança que é criança inventa questões, problemas. Nada é tão fácil, nem óbvio, para elas. Um dilema moral, presente em um desenho animado, realmente as deixa preocupadas, mas também as deixa provocadas a pensarem nos caminhos oferecidos, e em outros caminhos. Mesmo com uma moral, ou justamente por causa delas, as estórias ganham vida, ou melhor, vidas, pois a imaginação das crianças está a mil. No adulto, é bom quando as certezas se alternam com as dúvidas, as ideias se desdobram, e a curiosidade permanece ativa. Espero que nos tornemos alguma coisa que misture a formiga com a cigarra: que possamos ser disciplinados e dedicados naquilo que gostamos de fazer, naquilo que nos faça sentir bem, valorizados, com sucesso e felizes. E que possamos levar tão a sério o nosso prazer que não nos permitamos sentir culpa por ele. Ou tomar uma moral como algo terrível.
**Thiago Ricardo é psicólogo, atua no campo da psicologia educacional e social. Escreve na Rede Psicoterapias sobre temas cotidianos, política e meios de comunicação.
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