Imagens do fim do mundo
- redepsicoterapias
- 3 de jun. de 2013
- 3 min de leitura
O leitor do século XIX não existe mais. Líamos Dickens, deixando-nos conduzir e nos perder nos pântanos gelados e desertos da Inglaterra vitoriana. As costas se afundavam na poltrona, por sofrermos exatamente os sentimentos não correspondidos, as injustiças perpetradas pelos adultos e as fugas vividas pelo garoto Pip, em Grandes Esperanças. Demorávamos até desgrudar daquele livro. Era preciso mais um pouco de tempo até podermos retomar o convívio com as outras pessoas, nos salões e nas ruas. Londres e Paris eram a própria imagem da modernidade, em carros e multidões ziguezagueantes e atarefados. A vida se acelerava, e ela, junto ao clima político e social tenso, não permitiam mais sabermos das coisas pelas conversas de bar. O que era pra ser sabido, das cotações de mercadorias e finanças, até os problemas sociais, esgotava-se no olhar as manchetes que saltavam, e a rua por onde passava o operário exibindo pobreza e ameaçando revolta. Mas restava cada vez menos tempo para a mirada lenta e paciente a alguém na multidão, a um amor à primeira (e à última) vista que descesse da condução, ou a uma ponte que acabara de ser erguida. Tudo passava depressa diante dos olhos. O homem assistia passivo, por detrás do vidro de uma cabine no trem ou em um café, ou ainda em sala de cinema. Tecnologia e multidão faziam a vida urbana e a vida mental vertiginosas, nervosas, impacientes e míopes.
Não temos paciência para longas descrições. Já sabemos de tudo o que há no mundo e dentro do próprio homem. Está tudo em fotos e legendas. Como é o rio Ganges? Vem-nos imediatamente à cabeça a foto de pessoas usando determinado tipo de roupa, entrando em algo semelhante a um lago, com água muito suja. Não precisamos mais procurar fotos e comparar textos de enciclopédias. E como é sentir fome? Quando pensamos naquela imagem da criança negra esquelética, nua e de cócoras, em algum lugar da África que só o fotógrafo e o urubu que a observaram sabem exatamente onde fica, tornase difícil distinguir o viver do morrer de fome. Mas não temos dúvida de que aquilo sim é a fome. E quem é o tal cracudo, o que foi feito da vida dele, antes e depois da foto, senão o que conclui a legenda, que informa a localização na cidade e reafirma a política de internação compulsória? Não cabe discussão sobre a nossa vontade de circular sem impedimentos, ou do medo que nos faz querer que retirem as pedras do nosso caminho. Rio e São Paulo podem ser, respectivamente, belo ou moderno, e, para isso, enquadra-se ou o Pão de Açúcar, ou a Paulista. Eles também podem ser miseráveis, doentios e perigosos. Para isso temos a imagem do cracudo, que já nos dá tudo o que vimos tomando como mendigo, louco e bandido.
Para problemas sociais insolúveis, que sempre existiram e sobreviverão a mim, não compensa leitura, pesquisa, novas informações. Isso é lento, e temos pressa, não de saber, mas de resolver as coisas. Os problemas já foram por tanto tempo pesquisados, e nada foi resolvido! Não acreditamos em educação e reflexão. Temos a imagem, e ela nos basta. Se as coisas são simples, pra que complicar? E, com a perda da complexidade das coisas, da possibilidade que uma foto nos daria para perguntarmos, de usarmos a imaginação para criar novos entendimentos, acreditamos que podemos resolver os problemas do mundo. Claro! Se for uma questão de imagem, conseguir uma boa foto resolve. Então o programa de perseguição policial quer prender e dar um close no bandido. O Luciano Huck mostra bem as latas-velhas, os carrinhos de ambulantes e as pocilgas ganhando novas latarias, novas paredes, novos vernizes, almas reformadas. E um grupo de jovens, em visita a um abrigo de crianças e adolescentes moradores de rua, capturam os moleques jogando bola, fazendo brinquedos de sucata e dançando funk. Pedem sorrisos, animação. Um sorriso é um sorriso mesmo, não tem o que teorizar. Se eles sorriram, está tudo bem, acabou o problema.
As fotos dizem que o dia foi lindo, é o que eu escrevo na rede social. Somos leitores para quem a imagem inibe a criação de narrativas. O que ficamos sabendo, pela comunicação dos cartazes, manchetes e slogans, nos inquieta e faz protestar à esquerda e à direita. Enchemos-nos de informações repetidas, recortes de jornal do mal que achamos mais bárbaro. Temos indignação demais, e curiosidade faltando, perguntas de menos. O mundo vai mesmo acabar, de tanto que ando cortando as asas da minha alma.
**Thiago Ricardo é psicólogo, atua no campo da psicologia educacional e social. Escreve na Rede Psicoterapias sobre temas cotidianos, política e meios de comunicação.
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