O vício do desejo
- redepsicoterapias
- 21 de jan. de 2014
- 3 min de leitura
O desejo é um vício; um vício que desenvolvemos desde nossos primeiros dias de vida. É um vício tão grande que não somos sequer capazes de imaginar um estado de espírito livre de qualquer desejo. É comum confundirmos a ausência de desejo com a apatia. Mas a apatia não é ausência de desejo; apático é o desejo que não encontra mais nada para desejar. E mesmo o desejo que não encontra nada para desejar continua sendo desejo; ele continua desejando, só não sabe que deseja... e muito menos o que deseja. Mesmo a certeza de não estarmos desejando mais nada se revela, cedo ou tarde, ilusória. Por isso, o desejo é como um sonho do qual não conseguimos acordar. Mais que isso: por vezes ele se parece com aquele tipo de sonho, que quase nos leva a despertar, e que induzimos por nossa vontade quase desperta a se prolongar, para podermos dormir um pouco mais. Às vezes, atingimos novamente o sono profundo, e o sonho readquire contornos de realidade. No entanto, muitas vezes esse sono induzido mais se assemelha a uma luta contra a realidade; a realidade do despertar que ainda não conhecemos e que tomamos como o “vazio” em que os sonhos deixam de ser.
Todos os vícios que conhecemos são vícios do desejo. O desejo é o denominador comum de todos os nossos vícios. Por isso, ele é nosso único vício. É fácil entender como nos tornamos viciados no desejo. Nenhum momento de nossas vidas, mesmo o mais maravilhoso, é perfeito. Há sempre algo que dói, algo que nos falta ou que não foi realizado. Entretanto, fixamos sua impressão agradável e a transformamos numa idéia: a idéia de uma experiência que desejamos repetir. A idéia que se torna objeto do desejo é transformada em ideal. E quando a experiência ideal se repete, descobrimos que ela também não foi perfeita. Ela não reproduziu perfeitamente a experiência ideal que já não era, ela própria, perfeita! Assim, a imperfeição da reprodução é acrescentada à imperfeição do ideal. Mas, isso não impede que a reprodução se torne também o ideal de uma experiência a ser repetida. Também ela foi prazerosa e maravilhosa à sua maneira. Por isso, além de sua imperfeição ser acrescida à do ideal, ela também se transforma num ideal que, pelo acúmulo sucessivo de imperfeições, se torna cada vez mais desgastado ou cada vez mais desprovido de sentido. O resultado dessa equação nós sentimos na prática: É mais difícil “continuar sonhando” à medida que envelhecemos. Acreditar no desejo e dar sentido ao que desejamos é uma tarefa dificultada pelos anos que se passam. Sentimos que não adianta mais sonhar ou desejar nada, pois estaremos sempre a uma distância insuperável de tudo que possamos desejar. A sensação de que a idade nos deixa cada vez mais distantes do objeto de nossos desejos também motiva a fantasia de que lá longe, no início da vida, ele esteve em nossas mãos e foi depois perdido. Mas esse objeto jamais existiu. Somos vítimas da ilusão do desejo desde o dia em que nascemos.
O vício do desejo torna o passado cada vez mais idealizado e perdido, o futuro cada vez mais inalcançável e sem perspectivas, e o presente, no meio disso tudo, cada vez mais desprovido de sentido. Não admira que a necessidade de buscar uma ampliação do sentido da vida nas religiões e no misticismo seja sentida mais intensamente com a idade. Também não admira que ainda bem jovens, já na adolescência ou no início da vida adulta, as pessoas comecem a se interessar por filosofias rasas de motivação ou auto-ajuda, sintetizadas em algumas frases de efeito. Pois o desespero perante a falta de sentido da vida começa a despontar muito cedo. O despontar do desespero é o despertar que se anuncia. Diante dele, podemos nos esforçar para induzir novamente o sono e mergulhar no sonho que queremos prolongar. Nada mais conseguiremos além de um sono agitado, angustiado, meio acordado e ainda meio adormecido, conduzido por um sonhar sem pé nem cabeça, cuja única função é prolongar o torpor que não encontra mais sossego. Quantas vezes não transformamos o sonho da vida na luta agitada e angustiada contra a realidade que nos quer despertar de nossos ideais românticos, sociais e religiosos? Mas, também podemos enfrentar o desespero e despertar. Em meio à taquicardia do acordar repentino, ainda “bêbados” do sono que dormiu demais, esfregaremos os olhos e observaremos pela primeira vez a realidade que tanto temíamos. O que será descoberto de bom ou de ruim só poderá contar quem tiver a coragem de acordar.
*Daniel Grandinetti é psicólogo de influência existencial e psicanalítica. Atua na clínica há 12 anos. Tem a graduação e o mestrado em Filosofia e atualmente é doutorando, também em Filosofia, pela UFMG. Escreve para a Rede Psicoterapias às segundas sobre psicologia e cotidiano.
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