Qual o preço do seu desejo?
- redepsicoterapias
- 9 de fev. de 2014
- 3 min de leitura
Certa vez presenciei uma cena talvez corriqueira, mas que chamou bastante minha atenção. Estava em um evento grande, fui assistir a uma palestra com alguns amigos. Ao final da mesma, enquanto aguardávamos o vallet trazer nossos carros, eis que surge um rapaz, passando rapidamente na frente dos demais que também aguardavam e, em alto e bom som, com bastante arrogância, disse aos manobristas: "tragam meu carro primeiro, é um 'x", dando especial ênfase à marca do tal carro, conhecido mundialmente como símbolo de status social, de elevado poder aquisitivo.
Como mencionei anteriormente, não é uma cena rara, especialmente em uma cidade como São Paulo, onde diferentes classes sociais devem se engajar na desafiadora tarefa de conviver harmoniosamente e de forma civilizada. A cena me chamou atenção, sim, porque lembrei da segregação social que não cessa de retornar em nosso cotidiano, lembrando-nos dos restos dos sistemas elaborados cuidadosamente a fim de serem vendidos, massificados, consumidos.
Lembrei dos excluídos, daquilo que retorna como não simbolizado, do real*, como diz Lacan, desde os tempos mais primitivos da história da humanidade. E também lembrei da relação sujeito/objeto, relação esta que adquiriu novos contornos após Freud e Lacan.
É notavelmente interessante o efeito da posse do objeto no sujeito, quando este se perde no véu ilusório da sedução e na falácia da aquisição plena do mesmo. Após Lacan, sabemos que o objeto é este que sempre estará um passo à frente, bem próximo, inscrito no corpo, mas sempre fora de nosso alcance. E este simples movimento de esticar o braço na busca desenfreada e insana por agarrá-lo, esta crença de que a aquisição plena é possível é o que nos move, nos define enquanto sujeitos, enquanto seres providos de um criar único, de um desejo* puro, singular.
Mas todos já vimos uma cena como esta, porque todos vivenciamos, compartilhamos esse contexto hiper: hipermoderno, hipercapitalista, somos todos filhos do neo-liberalismo, dos restos nostálgicos de uma sociedade igualitária que um dia existiu apenas na mente dos mais utópicos.
E hoje, jogados em uma vida hiper, vemos através de novas perspectivas, temos agora também objetos hiper ao nosso alcance, e o melhor de tudo: milhões, infinitos objetos. Novas falácias, velhos dilemas.
É sofrido, de fato, como constatamos na clínica, viver sob a égide dessa ideologia do consumismo exacerbado, que massacra através de carícias. Sofre quem consome por não vislumbrar um outro caminho a percorrer, uma espécie de rota de fuga, mas por outro lado sofre também quem está à margem e não possui os atributos necessários para consumir. Novamente, eis o retorno do mal-estar, do recalcado. Você vai conseguir consumir tudo? Você vai conseguir gozar* de tudo? E se você conseguir? E se estiver mesmo, tudo ao seu alcance? O que você vai fazer com tudo isso?
Sinto informar aos desavisados que há uma fenda intransponível entre sujeito e objeto. Estas categorias se constroem e desconstroem dialeticamente num processo eterno, pois enquanto houver vida, haverá pulsão (o desvirtuamento da necessidade), haverá demanda, e haverá frustração. Com ou sem carro "x" ou "y", não se deixe enganar: a "matrix"está aí fora, pronta para nublar sua visão e comprar, a qualquer preço, o que você tem de mais valioso, de mais genuíno, a chave para abrir a porta que te levará rumo ao gozo fálico*, o único possível a nós, meros mortais atravessados pela linguagem: nosso desejo (este eterno insatisfeito). Então, qual o preço do seu desejo?
*Os termos real, gozo, gozo fálico e desejo mencionados ao longo do artigo são conceitos específi os da teoria lacaniana; para mais informações consultar P. Kaufmann, Dicionário Enciclopédico de Psicanálise - o legado de Freud e Lacan, Jorge Zahar Ed.:1996.
* Psicóloga e Psicanalista, Diretora e Supervisora da Clínica Espaço Savoir y Faire, especialista em Semiótica psicanalítica – Clínica da Cultura pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Clínica pela USP. Realiza pesquisas no campo das psicoses e outros transtornos graves do desenvolvimento. Escreve artigos utilizando a Semiótica Psicanalítica enquanto instrumento de leitura dos fenômenos sociais e culturais. Colunista da Rede Psicoterapias ao domingos onde escreve sobre Psicologia, filosofia e arte.
Contato: gualda.lorene@gmail.com
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