Crise, morte e silêncio
- redepsicoterapias
- 26 de fev. de 2014
- 4 min de leitura
O conceito de crise vem do grego “krisis”, que significa decisão, originário do verbo “krino” – eu decido, julgo. De um modo geral, o período de crise não se define inicialmente como bom ou ruim, mas sim como uma fase em que as estruturas e comportamentos habituais do sujeito não são mais suficientes para dar conta de uma situação que ocorre em sua vida, há uma ruptura em seu estado rotineiro e é necessário se adaptar a essa nova configuração, o que pode resultar em desenvolvimento ou regressão.
Vivemos atualmente num período de crise contínua, em que há um contínuo que nos força a rever nossos comportamentos o tempo todo e nos coloca em questionamento constantemente. Ainda assim, há alguns eventos que são considerados de “crise” por excelência, como a perda de um ente querido, por exemplo, visto que no ocidente a morte ainda é considerada um dos eventos mais temidos.
Porém, nem sempre foi assim. Na Idade Média, era usual que o indivíduo conhecesse previamente a hora de sua morte e se preparasse para ela, visto que os homens tinham contato próximo com os astros e eram habituados a morrer em guerras ou de doenças. Por causa disso, o ritual da morte era público, lento, tratado de forma natural e sem caráter dramático, envolvendo despedida dos familiares.
No século XVII, o homem passa preocupar-se com o que aconteceria no além-túmulo. Nesse período são fortes as representações de inferno e paraíso, rituais de absolvição para o juízo final, além do costume familiar de usar-se o preto ao longo dos dias após a perda do ente querido, como respeito à perda e também numa espécie de superstição que distrairia as almas perdidas dos familiares que restaram.
Até o século XVIII temos a morte romântica, em que esta é exaltada na arte, desejada e dramatizada em demonstrações públicas e extremas de dor na perda de um ente querido. Nesse período morte e erotismo passam a caminhar juntas, numa época em que o mórbido estava presente também nas artes e nos rituais. Assim como o ato sexual, a morte era vista como uma ruptura entre a vida cotidiana e racional do homem, que o lançaria no inesperado e irracional.
A partir do advento do capitalismo e inspirado pelo American Way of Life surgiu nossa concepção de morte atual, como um interdito, vergonhosa e ocultada pela medicalização e proteção da vida – que a coloca na posição de fracasso. Morre-se por que alguém não pode curar. A intolerância em relação à morte do outro passa a se tornar social, ocultando do moribundo a verdade sobre seu estado de saúde para poupá-lo do sofrimento ou para poupar a todos do inconveniente da fragilidade humana.
O hospital passa a cuidar do aspecto desagradável da morte e a família não manifesta aparentemente dor ou veste roupas diferentes do usual na ocasião da perda. Os próprios mortos passam por um ritual de embelezamento ao serem enterrados, para que sua aparência se assemelhe o máximo possível a de alguém vivo. Em relação à emoção, esta deve ser manifestada de preferência em particular. As manifestações públicas de sofrimento são consideradas vergonhosas, mórbidas, sinal de má-educação, visto que a morte se tornou um tabu.
No raciocínio do sociólogo inglês Geoffrey Gorer, tal tabu substituiu o sexo ao longo dos anos na sociedade vitoriana, que ao mesmo tempo em que relaxava seus interditos sexuais aos poucos os substituía pelo receio no tema da morte. O autor diz que o luto se tornou tão solitário e envergonhado quanto masturbar-se, e que, tal como o sexo, a falta de controle sobre a dor da perda seria manifestação de fraqueza de caráter. A questão é que afastar-se dos rituais e do sofrimento que acompanha a morte dificulta a elaboração da dor que acompanha o período de luto. A permissão social para que o rito ocorra facilita na compreensão do próprio evento da morte, e a negação disto faz com que se patologize algo natural à condição humana.
Muitas vezes nos mantemos no silêncio em relação à perda, deixa-se de falar ou ligar por não saber o que dizer ou como se portar diante de tal situação, pois o fato é que a morte tornou-se constrangedora a todos nós. Nesse sentido, é importante também que o enlutado compreenda que o fato de não saber o que dizer não significa falta de sensibilidade à perda, e assim, que não se sinta demasiado frustrado em suas expectativas em relação ao comportamento dos demais.
Todo apoio social que se possa dar ao enlutado é positivo. Ainda em meio ao silêncio, a presença dos outros é importante àqueles que perdem alguém querido. Os rituais de morte têm justamente o sentido de dar um espaço autorizado para a dor, que se chore e se lamente a perda. Na ausência de palavras, a simples presença física é capaz de demonstrar afeto e respeito com a dor do outro. Os clichês “seja forte”, “vai passar” ou “foi melhor assim” acabam por não ajudar, visto que o período do luto perdura e passa por fases distintas. Mas isso é assunto para outra conversa.
Até logo!
*Para saber mais: A história da morte no ocidente – Philippe Ariès
The pornography of death – Geoffrey Gorer (sem tradução no Brasil)
**Sabrina Lima é estudante de psicologia pela PUC-SP, é colunista da Rede Psicoterapias, onde escreve às quartas-feiras sobre cotidiano e contextos de crise em clínica ampliada. Além da Psicologia, é amante de música e das palavras, e atualmente se dedica ao estudo da escrita e suas formas de expressão como recurso terapêutico.
E-mail: slima.psi@outlook.com
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