Amadurecer é aprender a desejar o que já possuímos
- redepsicoterapias
- 19 de mar. de 2014
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Só há desejo onde há falta. E o que é a falta? ‘Falta’ é nome que damos aos diversos estados de privação que experimentamos. Entre esses estados, os que entendemos melhor são a fome e a sede; fome é a falta de alimento e sede a falta de líquidos. Mas, a falta, estritamente falando, não se refere à sensação corporal característica da fome e da sede; ela se refere à imagem da bebida e do alimento que evocamos quando em privação. Não há privação que não seja acompanhada pela evocação da imagem daquilo que nos falta. Entretanto, nem sempre a imagem evocada corresponde ao objeto apropriado para nos saciar.
É bastante comum evocarmos a imagem de alimentos, por exemplo, quando nos encontramos em carência afetiva; essa mesma carência também pode evocar fantasias agressivas de vingança. Nem o alimento e nem a vingança são objetos apropriados para saciar uma carência afetiva. Mas, no turbilhão de medo e desejo que caracteriza nossa afetividade, é muito fácil nos deixarmos dominar por confusões do tipo. O mesmo dificilmente ocorre com a fome e a sede. Se estamos com fome ou com sede, evocamos a imagem de bebidas e alimentos. Simples assim. Bebidas e alimentos são o objeto que nos falta quando estamos com fome e sede; são o objeto que não possuímos, que não está ao nosso dispor. Mas, a posse do alimento e da bebida só nos sacia quando incorporados ao organismo. Para que a fome e a sede nos abandonem, é preciso que o alimento e a bebida passem a fazer parte de nosso eu corporal. A partir do instante em que eles são a nós incorporados, não há mais sentido em desejá-los até que a falta se instaure novamente.
A mesma regra também vale para a carência afetiva. Toda carência que experimentamos em nossa vida familiar, social, profissional e amorosa é de ordem afetiva. No entanto, os objetos apropriados a essas carências não podem ser ingeridos e incorporados por nós. Mas, isso não impede que eles sejam incorporados ao nosso eu. Pois o eu se forma na identificação com seus objetos, e o objeto com que o eu se identifica se torna m'eu’. Tudo e todos com que o eu se identifica é m‘eu’. Meu corpo, meu pai, minha mãe, meu país, meus amigos, minha profissão, meus bens materiais. O conjunto desses objetos representa a existência concreta do eu. Por isso, a relação do eu com todos eles é pessoal. Uma ofensa ou dano aos objetos que o eu toma como m‘eu’ é uma ofensa e um dano ao próprio eu. Mas, nada que o eu elege como m‘eu’ pertence de fato a ele. Na verdade, para o eu, a relação de pertencimento é uma relação de identidade: tudo e todos que o eu toma como m‘eu’ é idealizado por ele como a essência dele mesmo. Porém, a idealização não passa por cima do fato de que o eu é diferente dos seus objetos; eles não são o próprio eu, eles são m‘eu’s. Mesmo não sendo o próprio eu, ainda assim o eu identifica neles sua própria essência, sua identidade. Por essa razão, os objetos com os quais o eu se identifica e que representam para ele sua identidade concreta são justamente os objetos que lhe faltam. A posse que o eu clama sobre eles ainda não se realizou; ele apenas a idealizou. O desejo não é nada mais que essa idealização. Para haver desejo, é preciso haver falta. E só há falta do objeto que o eu idealizou como m‘eu’ sem nunca realizar concretamente a sua posse. E como o eu realiza a posse de um objeto?
Para que a posse se realize, é preciso deixar de idealizá-la, e a transição do ideal para o real ocorre na experiência, pois o ideal é, por definição, aquilo que nunca foi experimentado. Assim, é o hábito e o costume que asseguram ao eu a posse de seus objetos. O objeto que se torna assegurado pelo eu é o objeto em que ele encontra sem receio algum a si mesmo; consequentemente, é o objeto que não faz mais sentido desejar, assim como não faz mais sentido desejar a bebida e o alimento após eles serem incorporados por nós. O desejo só deseja aquilo que ele idealiza, e aquilo que ele idealiza é aquilo que ele não tem e nunca experimentou. Por isso, o gramado do vizinho é mais verde, sua mulher mais bonita e sua casa mais aconchegante.
A lógica do desejo é cruel. É a lógica da imaturidade, a lógica que não enxerga nada valioso, nada desejável no que somos e no que possuímos, e que por isso nos lança na busca do que não somos e do que não possuímos. Entretanto, aquilo que não somos e que não possuímos é sempre aquilo que algum outro é e possui. Portanto, o desejo só deseja ser o que o outro é e possuir o que o outro possui. Por isso a lógica do desejo é imatura. O desafio do amadurecimento é aprender a desejar aquilo que o hábito e o costume já nos assegurou que somos e que é nosso; é o desafio de aprender a usar a lógica do desejo contra ele mesmo para ensiná-lo a sempre se saciar com os objetos que já o saciaram diversas vezes. Parece que a felicidade depende, de alguma maneira, desse aprendizado.
*Daniel Grandinetti é psicólogo de influência existencial e psicanalítica. Atua na clínica há 12 anos. Tem a graduação e o mestrado em Filosofia e atualmente é doutorando, também em Filosofia, pela UFMG. É ensaísta e publica seus textos na página 'Psicologia no Cotidiano' do Facebook: www.facebook.com/cotidianoepsicologia.
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