O sentido de qualquer relação é o afeto
- redepsicoterapias
- 22 de abr. de 2014
- 3 min de leitura
Em amizades e relacionamentos amorosos, procuramos pessoas com interesses semelhantes aos nossos. Nos relacionamentos amorosos, buscamos aqueles com quem compartilhar nossos planos e objetivos de vida. Nas amizades, geralmente nos associamos a pessoas com gostos e opiniões compatíveis aos nossos. O dia-a-dia de uma vida cheia de interesses em comum com os outros pode nos propiciar aquela sensação de pertencimento e cumplicidade que nos enche de confiança quanto à validade de nossos ideais e quanto às possibilidades positivas de realizar nossos planos e objetivos. No entanto, quando a paixão pelos interesses é maior que o afeto pelas pessoas, nossos relacionamentos se tornam vazios.
Ainda hoje, as pessoas começam a nutrir muito cedo o desejo de casar e ter filhos. Já na infância, elas sonham e idealizam o dia do casamento, a vida de casados e a chegada das crianças. É claro que, nessas fantasias, o marido, a esposa e o bebê não são pessoas reais, e não importa que sejam. Importa apenas que as circunstâncias e os eventos fantasiados sejam perfeitos. Todo o fantasiar sobre o casamento e a criação de filhos está direcionado à idealização da relação com cônjuges e crianças que ainda não existem. São pessoas sem rosto que encarnam ideais que construímos e nutrimos ao longo de muitos anos. Quando uma pessoa real passa a povoar consistentemente fantasias amorosas, a possibilidade de estarmos apaixonados por ela ou de virmos a nos apaixonar é muito grande. Entretanto, nem por isso a fantasia se torna mais realista. Foi a pessoa real que se tornou idealizada.
Em nossas fantasias românticas, a pessoa fantasiada é o que menos importa. Muitos rostos diferentes podem assumir nelas o mesmo papel. Ao longo dos anos, podemos fantasiar os mesmos eventos e as mesmas circunstâncias ao lado de pessoas que, apesar de diferentes, assumem o mesmo papel e encenam até os mesmos diálogos com a gente. Espera-se que, com o tempo, essas fantasias amadureçam. E em que consiste o seu amadurecimento? Ele consiste no enfraquecimento do interesse pelas circunstâncias e eventos ideais e no fortalecimento do interesse pelas pessoas reais. Ao invés de se procurar pessoas reais que possam assumir papeis previamente idealizados numa relação previamente desejada, passa-se a permitir que o desejo de se relacionar nasça e amadureça na relação real com uma pessoa real. Ao invés do desejo de se casar que está dirigido a uma pessoa ideal e indeterminada, nasce o desejo de se casar com aquela pessoa real, e apenas com ela. Na falta dela, o desejo não ficará em suspenso e à procura de alguém para assumir o papel que ficou vago. Será preciso que ele nasça novamente na relação real com outra pessoa real.
Por sua vez, opiniões e gostos em comum são o principal gatilho para nossas amizades na infância e na adolescência. E não é à toa que, justamente nessa idade, elas sejam tão instáveis e ambivalentes. Amizades baseadas em gostos e opiniões semelhantes aos nossos não costumam tolerar divergências. Além do mais, relações construídas em torno de um gosto ou opinião em comum nutrem o espírito competitivo sobre quem sabe mais do assunto, quem tem a melhor performance, quem possui os melhores itens, o melhor equipamento, as melhores marcas. O espírito competitivo excessivo pode resultar em ressentimento, inveja e rancores. E se os interesses em comum, ao invés de ligados a gostos e opiniões, dizem respeito aos assuntos do cotidiano, o afastamento por tempo prolongado pode acabar com a amizade. Quando os velhos amigos, cada qual envolvido em suas próprias e novas questões cotidianas, voltam a se encontrar, não têm mais o que conversar.
Amores em que o principal objetivo é o se casar, e não necessariamente o se casar com quem se namora, são vazios. E são vazios porque, nesse caso, a base do amor é a possibilidade da realização de uma relação pré-concebida, não a relação construída aos poucos com uma pessoa real. Amizades em que o principal objetivo é a troca de opiniões semelhantes e o partilhar de gostos semelhantes aos nossos são vazias. E são vazias porque, nesse caso, a base da amizade é a paixão pelos nossos interesses. As pessoas reais, nossos amigos, apenas exercem o papel de reforçar uma paixão que existe independentemente delas. Relações só possuem sentido próprio quando sua base é o afeto pelos outros; é preciso aprender a gostar das pessoas com quem nos relacionamos. E aprender a gostar das pessoas é aprender a gostar simplesmente da sua presença, não importa que papeis elas possam exercer em nossas fantasias e que gostos e opiniões elas possam compartilhar com a gente.
* Daniel Grandinetti é psicólogo de influência existencial e psicanalítica. Atua na clínica há 12 anos. Tem a graduação e o mestrado em Filosofia e atualmente é doutorando, também em Filosofia, pela UFMG. É ensaísta e publica seus textos na página 'Psicologia no Cotidiano' do Facebook: www.facebook.com/cotidianoepsicologia
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