“Hey Joe, where you going with that gun in your hand…” – Considerações acerca de Ninfomaníaca, de La
- redepsicoterapias
- 27 de abr. de 2014
- 3 min de leitura
Não poderia deixar de aproveitar este espaço para trazer um pouco de arte e de minhas percepções acerca dos últimos filmes de Lars Von Trier, Ninfomaníaca 1 e 2. Como fã deste diretor, acompanhei de perto o lançamento das duas partes de sua obra.Joe, a protagonista, fascinou-me em vários aspectos, ouso dizer que perto de Grace, do aclamado Dogville, esta é agora uma de minhas personagens favoritas do cinema.
Das imagens que retive, incansáveis e delirantes, uma das mais fortes foi seu olhar. De lugar algum, seu olhar me parecia sempre vazio, sem direção. Não o olhar da jovem Joe, pura lascívia, que sabia bem o que fazer com seu corpo, o que fazer com sua vagina, presa em uma ânsia louca e quase delirante de ser plenamente preenchida, de tampar todos os seus buracos. Esta Joe conferiu um sentido, um destino a seu corpo pulsional, a sua vagina enquanto buraco, a sua sexualidade enquanto não-toda. Ou pelo menos tentou, demasiadamente, de todas as formas que a cultura lhe permitia (ou não).
A jovem Joe era puro ato, ato que barra a palavra. Para que a palavra, se há o sexo? Se há o pênis, a vagina, e o encontro de ambos? Esta Joe apenas prenunciava a chegada de um outro tempo: o tempo do vazio. Sua juventude e impulsividade talvez impediram-na de perceber que algo estava sempre a se desencaixar, que os encontros eram apenas prenúncios de desencontros. À Joe madura, portadora agora de um sexo dilacerado, o resto. Restos de uma vagina usada e abusada, restos de uma vagina excessiva que, de tão gigante, acabou por engolir a pobre Joe. Enquanto sujeito, Joe estava morta e pairava às margens da sociedade, mas não porque esta a rejeitava, não porque confessou minuciosamente seus pecados a um Deus encarnado na figura de Seligman, o Outro que porta consigo todos os significantes, mas porque o próprio corpo de Joe a expulsou, a excomungou.
Joe agora era uma estrangeira em seu próprio corpo, no que restou dele, o que não servia mais para nada. Enquanto resto de um gozo sem limites, Joe acabou também por se tornar um resto. Um resto de esposa, um resto de mãe, um resto de mulher, um resto de ser humano. Beirando e brincando com o limite, Joe conseguiu ver bem de perto o nada da existência. Joe, a mulher com nome de homem, a mulher que experimentou todos os vértices que o gozo pode oferecer,agora era um ninguém, e desapareceu perante os olhos dos espectadores horrorizados e de si mesma, coisificada, enclausurada após tanto lutar por uma tal liberdade feminista... uma tal liberdade de ser portadora de um sintoma só seu, seu tesouro...
A palavra dita, a confissão, salvou Joe de seus pecados? Relatar detalhadamente, quase de forma perversa, sua vida excessiva a um outro alheio, às margens do sexual, salvou-a de sua vagina carnívora e de sua irremediável angústia frente a um corpo cortado pela linguagem, pelo sexual? Haveria salvação para Joe? Entre o céu e a terra, há mais "Joes" do que pode a nossa vã imaginação alcançar. (Joe, para onde você está indo? Cuidado, Joe, afinal, você anda armada, e não amada).
* Psicóloga e Psicanalista, Diretora e Supervisora da Clínica Espaço Savoir y Faire, especialista em Semiótica psicanalítica – Clínica da Cultura pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Clínica pela USP. Realiza pesquisas no campo das psicoses e outros transtornos graves do desenvolvimento. Escreve artigos utilizando a Semiótica Psicanalítica enquanto instrumento de leitura dos fenômenos sociais e culturais. Colunista da Rede Psicoterapias ao domingos onde escreve sobre Psicologia, filosofia e arte.
Contato: gualda.lorene@gmail.com
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