Amor materno
- redepsicoterapias
- 7 de mai. de 2014
- 4 min de leitura
Na coluna anterior, falei um pouco sobre a criança e a família, e sobre como a relação entre ambos pode ser geradora de conflitos e sintomas. Penso que para compreender essa ideia, é importante também entender como se deu a construção do amor materno e a relação com a criança na família.
Até o século XII o poder patriarcal era instituído como divino devido à teologia cristã e sua concepção do pecado original, era o pai e não a mãe aquele protegido por Deus e responsável pelos filhos. A mulher era vista como originária do homem no sentido bíblico, pecaminosa, inválida e submissa ao poder do marido. Isso se estendia aos filhos, que pouco conviviam com ela e no geral não tinham vida própria no lar.
No período medieval, a criança era como um adulto em miniatura, não possuía personalidade ou local que lhe era atribuído como seu na família, o que fazia que fosse rapidamente substituída em caso de morte, sem grandes lamentações. Muitos bebês nem mesmo possuíam nome ao nascer, e se morriam eram enterradas em qualquer lugar.
Isso não significa que as crianças deixavam de receber afeto, elas apenas não eram vistas como centro de cuidados familiares. Para a mulher imersa na sociedade patriarcal, o mais importante ainda era servir ao marido da forma que melhor lhe conviesse, o que incluía trabalhar ou tomar conta de casa, e nem sempre o bem-estar da criança fazia parte desses planos. Era prática comum deixar os bebês com amas-de-leite até que estivessem grandes o suficiente para internatos ou conventos, por exemplo.
Esse alheamento dos pais em relação aos pequenos pode ser compreendido como forma de proteção à dor causada pela perda, pois as condições de saúde eram tão precárias que grande parte dos nascidos não sobrevivia. Além disso, nesse período a concepção de casamento não incluía objetivamente o amor entre homem-mulher, mas sim a conveniência. Este até poderia aparecer, mas não era a razão principal pela qual as pessoas se casavam. O amor era visto como algo capaz de tirar a razão, gerador de enfraquecimento e passividade: conceitos negativos e frágeis para se construir a base de uma família.
Porém, em meados do século XVIII existe uma mudança radical nessa concepção, estimulada pela descoberta de que a população diminuía consideravelmente na Europa, e que a criança teria valor mercantil: seria de um lado o homem capaz de produzir riquezas através de seu trabalho e de outro o poderio militar das nações – toda morte agora era uma perda para o Estado. Sendo assim, era necessário que os pequenos sobrevivessem, e para isso a mãe seria peça chave.
Nessa nova chama, surgem então inúmeras publicações que estimulavam o cuidado materno como retomada à natureza, elogiando a beleza e pureza da mulher-mãe, disseminando a ideia de que o amor materno deveria ser espontâneo, algo oriundo da natureza. O ofício materno deveria estar acima de todos, e qualquer desvio disso irá culpa-la, ameaça-la por não seguir essa natureza. A mulher deixa de ser associada à imagem de Eva e passa a ser espelho de Maria, doce e modesta.
Aliada a isso e estimulada pela Revolução Francesa, cresce também a noção de carinho familiar, os casamentos passam a englobar uniões afetivas tendo a felicidade como ideal e a criança como realização suprema do amor dos pais – concepção que ainda vigora. Isso caminha junto com melhores condições de saúde e práticas contraceptivas – ter menos filhos era fundamental para cuidar deles bem, e as perdas de filhos ganham um novo olhar.
Feito tudo isso, cabe questionar: o amor materno é algo da natureza por si só ou construído socialmente? Todas as mães amam seus filhos? E quando amam, o fazem de maneira igual a todos? Nossa resposta é: nem sempre, embora isso seja difícil de encarar de forma simples, porque mobiliza nossos sentimentos em relação às nossas próprias mães. Não somos então incondicionalmente amados?
De algum modo, o social atualmente corrobora para uma visão santificada de maternidade: exigimos que a mãe não somente cuide da criança, mas também faça isso com abnegação e carinho – não deve ser só “mãe”, deve ser “boa mãe” – e compreendemos como aberrações à natureza mulheres que se mostram incapazes disso.
Indo além, existe algo errado com a mulher que não deseja a maternidade? Assumir essa postura ainda é controversa – “ah, deve ter algum problema” “está fugindo da sua natureza” – são frases que já ouvi. Porém, nem sempre as mulheres desejam ter filhos. E nem sempre aquela que os teve, desejou. E nem sempre aquela que os desejou sabe lidar com eles.
O sentimento de amor materno não é algo que vem automaticamente junto à gestação, é construído. E os mediadores para isso são não só as questões ligadas ao desejo, mas também condições físicas e psicológicas da mulher, o suporte social e cultura em que está inserida. Tudo isso somado às suas vivências pessoais e referências maternais que já viveu e que possui hoje.
E, nos casos “bem sucedidos”, ainda é sujeito a falhas e imperfeições, como qualquer sentimento. Encarar isso pode soar aversivo para nós que já crescemos nessa lógica inquestionável, mas costumo falar que cada uma faz o melhor que pode conforme as condições que possui no momento. E nós da Psicologia temos como parte fundamental do trabalho lidar com quaisquer configurações familiares sem questionamento moral, julgamento ou enquadramento de conduta.
Até a próxima!
*Sabrina Lima é estudante de psicologia pela PUC-SP, é colunista da Rede Psicoterapias, onde escreve às quartas-feiras sobre cotidiano e contextos de crise em clínica ampliada. Além da Psicologia, é amante de música e das palavras, e atualmente se dedica ao estudo da escrita e suas formas de expressão como recurso terapêutico.
E-mail: slima.psi@outlook.com
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