"Antes sêsse, mas não esse"
- redepsicoterapias
- 30 de mai. de 2014
- 4 min de leitura
O quê? Um psicólogo que não domina o idioma e tem a pretensão de conhecer a alma humana! Que título é esse?
Calma! Calma! Ou, como diria o Chapolin Colorado: "Palma! Palma! Não priemos cânico!"
Em primeiro lugar, esclareço que quinzenalmente tenho a agradável missão de escrever um artigo sobre Psicologia e Cultura. E isso dá samba.
Tanto que o título, familiar a quem aprecia samba de breque (por vezes, a vida impõe-nos algumas "brecadas"), é o verso final do sucesso "O Analfabeto", de Moreira da Silva.
No entanto, se a vida impõe-nos algumas "brecadas" nada apreciáveis, não obriga-nos a permanecer parados, estáticos. No caso da música, há a internet (YouTube), para quem quiser ouvir; no caso de alguma "desafinada", há a psicoterapia, para se fazer ouvir.
"Antes sêsse, mas não esse" é a versão moleque (Kid... Moringueira, apelido de Moreira da Silva) para "Antes fosse, mas não é"; queixa comum a quem procura um psicólogo, conclusão comum ao longo da escuta profissional, mas, no caso terapêutico, algo longe de ser o "final". Há o verso, sem dúvida. Mas o reverso também, que é o que busca-se num consultório de Psicologia.
O ser humano, tradicionalmente, é cheio de verdades. E nada mais salutar do que aquele momento para esvaziar-se de algumas delas; nocivas, ou não tão verdadeiras assim.
São verdades culturais, individuais, sociais, por vezes travestidas de banais, mas, em não poucos casos, fatais. Fatais para o estar saudavelmente no mundo, ver o outro e com o outro interagir.
Não há fabricante maior de rótulos do que nossa cultura. Como se não nascêssemos, mas fôssemos fabricados: a criança é assim, o jovem é assim, o adulto é assim, o idoso é assim, o homem é assim, a mulher é assim, e, em vez de assados, está-se por vezes frito. E não se é coletivamente "assim".
"Antes sêsse (ou não), mas não esse". E esse é o grande barato (para quem pensa que não existe "barato" no dicionário do psicólogo, eis aí prova em contrário) da Psicologia: cada um é cada um e o que dá conta de ser. Ser a cada dia melhor é uma busca pessoal, with a little help from my (nem só de samba, mas de rock também se vive) psicólogo.
"Ah, mas não tem uma fórmula que sirva para tudo e para todos?"
Não, não existe. E, na próxima coluna, tenho a intenção, se Deus assim me permitir, de mostrar isso através da Literatura. E já antecipo: fórmula única, para tudo e para todos, é outro tipo de "autoajuda"; a autoajuda verdadeira é a que a pessoa se dá, ao procurar um profissional que vai vê-la como alguém único.
E por que isso?
Embora não raro rotulados, não somos produtos de fábrica. Basta ver dois irmãos que sofrem um revés comum (perda de um pai, por exemplo), criados sob a mesma cultura e sob o mesmo teto: um "breca" (trava); outro segue em frente. E saíram da mesma "fábrica", em tese com os mesmos componentes (genéticos)... mas, como sabiamente se diz: "A gente não vem com manual". Mas a gente precisa ter um mínimo de cuidado para conosco, antes mesmo de um "enguiço" mais sério.
Precisamos ter um mínimo de cuidado, mas somos livres para fazer nossas escolhas.
Portanto, se a escolha é cuidar da casa de tijolos, cimento, madeira e ferragens na qual habitamos, ou da feita do físico, mental, espiritual, psicológico e emocional, cada um faz sua opção e meus mais sinceros votos de que conviva bem com elas.
Na casa de tijolos, mudar o canal da TV, móveis e cortinas é algo relativamente fácil. Mais fácil ainda é mudar de Moreira da Silva para Beatles, ou outro artista qualquer. Um pouco mais exigente é mudar o canal que nos liga ao fazer e à alegria de viver, o que implica (implicar-se é essencial) certa atividade, atitude (nem sempre assertividade, pois o ver-se envolto em dúvidas e incertezas é comum), em vez de conformismo (a chamada "zona de conforto") e passividade. Mas, para o nosso próprio bem, temos que ser um pouco exigentes para conosco. Não a ponto de exigirmos um perfeccionismo irreal e cobrarmo-nos de forma inclemente e desumana. Nada mais avesso ao psicológico.
Costumo sempre comparar (alguns colegas não gostam) o psicólogo a um faxineiro. Até mesmo porque longe de mim dizer que trabalho de uma faxineira é menos importante. "Ado, ado, ado... cada um no seu quadrado". Seja ele um azulejo, ou as fases do desenvolvimento de uma criança.
Há o momento no qual uma torneira, ou mesmo um registro (o uso dessa palavra é intencional) dá problema. No caso, chama-se um bombeiro hidráulico e tudo se resolve. Mas não é porque não há problema que vai-se deixar o banheiro sujo. A terapia, semanal ou quinzenal, é um pouco dar uma limpezinha básica no que se deixou acumular não é de hoje e no que se acumula de tempos em tempos.
Afinal, individual ou culturalmente, venhamos e convenhamos, o que a gente mais deseja é subir no palco da vida limpinho e cheirozinho, mesmo que, ao final da apresentação, estejamos a pingar suor. Razão maior ainda para o banheirinho estar "nos trinques". A vida é um eterno convite a "se apresentar"; não raro, de surpresa. Ilusão pensar que tudo é programado. "Antes sêsse, mas não esse".
* Augusto Carlos Duarte é psicólogo clínico, tendo como referencial a Psicanálise. Presta atendimento individual a crianças, jovens, adultos e idosos, bem como terapias de casal, ou em grupo. Possui graduação também em Comunicação Social (Jornalismo). É colunista da Rede Psicoterapias, onde escreve às sextas sobre Psicologia e Cultura. E-mail: augduarte2@gmail.com
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