Com quem você se deita e com quem se levanta?
- redepsicoterapias
- 27 de jun. de 2014
- 4 min de leitura
Tudo bem; eu sei: aprendemos, desde criancinhas, a responder em forma de oração: "Com Deus me deito com Deus me levanto, com a graça de Deus e do Divino Espírito Santo." Creia-me: Deus, por vezes, é o único com força suficiente para fazê-lo e que nunca desiste de Seus filhos amados.
No entanto, permitir-me-ei... Meu Deus! Como a Rede Psicoterapias é incrível! Fiquei dez anos doido - é saudável um psicólogo escrever isso? - para escrever "permitir-me-ei" e já o consigo no terceiro artigo! Que maravilha! Bom,... permitir-me-ei associar a pergunta título não ao universo religioso, mas ao cinematográfico.
E por que fazê-lo?
Porque a Psicologia tem um quê de sétima arte, dos papeis vividos ou preteridos. Dizem que o ator Ronald Reagan foi chamado para viver o papel de Rick Blaine, em "Casablanca", mas achou que o enredo não era lá essas coisas. Acabou eleito presidente dos Estados Unidos, o que só reforça a importância - e as explicações - de Freud, para a vida do planeta.
Mas coloquemos em cena a atriz Rita Hayworth, cuja foto, no papel que a imortalizou, "Gilda", ilustra a coluna.
Sobre o filme, aconselho a (re)vê-lo. Nele, quando a personagem Gilda canta "Put The Blame On Mame" (o YouTube está aí para isso), acontece aquele que é considerado o mais provocante strip-tease da História do Cinema. E o strip limita-se a ela tirar uma das luvas. Coisas da fantasia não exigir tanto ato explícito, o que continua par e passo com o universo da Psicologia.
Rita Hayworth tornou-se objeto do desejo de nove entre 10 mancebos de bigodinhos finos e cabelos penteados com Gumex ("Dura lex, sede lex, no cabelo só Gumex!"), em tempos nos quais "nove entre 10 estrelas de cinema" usavam Lux.
Pela regra humana (bem anterior ao cinema) de invejar a beleza, era de se esperar que tamanha "deusa" fosse a mulher mais realizada do mundo, não?
Ledo engano. Num de seus momentos de solidão, sem ter certa constância em termos de com quem se deitar e com quem levantar, Rita Hayworth explicou ser amada por tantos e ao mesmo tempo por ninguém: "Os homens sonham com Gilda e acordam com Rita".
Frase de efeito? Dramática?
Quem privou do convívio com Rita afirma ser a mais pura verdade. E aqui vem um ponto interessante, que o cinema (assim como a TV) nos ensina: por vezes, tornamo-nos escravos de um papel; o ator W é o galã, a atriz X é a mocinha, o ator Y é o vilão, a atriz Z é a vilã, e fica-se não à espera de outro strip, mas de uma Meryl Streep, que tira de letra o que aparecer.
Voltando a Rita, certa feita o jornalista e escritor Ruy Castro, mineiro, em seus primeiros tempos de Rio de Janeiro, nos idos dos 1950, ficou atônito ante os dois lados de Rita: no elegante salão do Copacabana Palace, a sensualidade explosiva, que fazia com que taças de champanhe tilintassem de tesão; na manhã seguinte, em frente ao mesmo hotel, sob uma chuva inclemente, uma mulher aguardando um táxi, homens passando por ela sem a ela dirigirem os olhares, dirigidos, isso sim, às anônimas senhoras e senhoritas que aventuravam-se, de sombrinhas, capas e galochas, a sair naquele tempo. Rita Hayworth, a meio metro de quantos certamente a desejavam, não era Gilda.
O que quero dizer com isso?
Que, antes de pensar no gato ou na gata (Gilda talvez seja um bom nome pra gata) com quem irá dormir ou acordar, é bom saber que você acordará com uma pessoa a vida toda: você.
Não existirão maquiadores, repórteres (por vezes, nem que mora com você vai querer notícias suas), roteiros e alguém que te diga: "Luz, câmera, ação!" Há momentos nos quais a "ação" passa-se no escuro, na câmara (e não câmera) inconsciente que todos temos e sem que se possa repetir a cena até ficar boa.
Onde entra a Psicologia nessa brincadeira?
Psicólogos amam cinema (pelo menos os normais, o que não dá para generalizar muito a questão). Mas, tão logo uma possível paciente liga, em busca de uma consulta, e dá o nome de Rita, o psicólogo agenda e aguarda a Rita. Não sonha, muito menos com Gildas. Em boa parte dos casos, buscará saber sobre sonhos. Mas os da paciente em questão (pode incluir ser atriz de Hollywood; no problem!)
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Num consultório, terá lencinho de papel para quando as emoções jorrarem. Mas não virá o maquiador, nem o psicólogo, tal qual diretor, dirá: "Eleve os olhos ao infinito! Aperte as unhas contra as palmas das mãos! Cubra o rosto com as mãos e balance a cabeça! Soluce! Faça expressão de: 'Oh, dão, dão, dão! Bor quê, beu Deus? Atire-se de joelhos ao chão, amassando a carta que está em suas mãos!" (hoje, tudo é Whatsapp, não?) e por aí vai.
Sonhar ser Gilda e acordar Rita nem sempre é exigência de público, diretores e produtores. E não adianta contratar agentes para garantir bons papeis.
Psicólogos amam cinema, como já disse. Mas o agente está mais para "a gente" (cliente) é quem consegue compreender a si e as boas oportunidades que se apresentam. Alguns tiram o sono, são difíceis de assimilar, exigem um ou outro truque (dizem que, no acima citado "Casablanca", o baixinho Humphrey Bogart tinha que subir num banquinho, para ficar acima - exigência cultural - da alta - para os padrões femininos da época - Ingrid Bergman).
Por vezes, a Arte imita a Vida e Rick Blaine (Humphrey Bogart) e Ilsa Lazslo (Ingrid Bergman) nunca mais dormirão e acordarão juntos. Mas a função da Psicologia é meio sacana: é fazer você apaixonar-se por si e pela vida e permitir-se pedir ao Sam para "Play It Again", quantas vezes forem necessárias e sem medo de sofrer.
Afinal, na frente do Copacabana Palace ou não, quem está na chuva é para se molhar. E vai que o/a atendente da farmácia, onde você vai comprar o Resfenol é um(a) gata... O importante é não sair de cena, pois, se os fotogramas de cinema passam numa velocidade de 24 quadros por segundo, os fatos, alegrias e dramas da vida passam a uma velocidade de 24 horas por dia. Dá até um tempinho pra fazer terapia, creio eu.
* Augusto Carlos Duarte é psicólogo clínico, tendo como referencial a Psicanálise. Presta atendimento individual a crianças, jovens, adultos e idosos, bem como terapias de casal, ou em grupo. Possui graduação também em Comunicação Social (Jornalismo). É colunista da Rede Psicoterapias, onde escreve às sextas sobre Psicologia e Cultura. E-mail: augduarte2@gmail.com
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