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Os bons também morrem

  • Foto do escritor: redepsicoterapias
    redepsicoterapias
  • 25 de jul. de 2014
  • 5 min de leitura

Quem gosta de westerns, deve lembrar-se de um clássico do gênero, intitulado "Os Brutos Também Amam". Título esse em português, pois o original é o nome do personagem principal, "Shane", interpretado pelo ator Alan Ladd.


Há certa estranheza em brutos amarem, homens chorarem e, supra sumo dos supra sumos: pessoas boas morrerem.


- "Mas morreu como? Ele era uma pessoa tão boa!" (Mesmo os péssimos tornam-se ótimos rapidinho, depois que morrem; alguns beiram a perfeição em forma de gente!)

Desde cedo, crescemos com a falsa ideia de que só os maus morrem.


- "Mãe, por que o Lobo Mau morreu?"


- "Porque ele era mau, meu filho." (Sempre ajuda à compreensão infantil o Lobo Mau ser mau).


- "Mãe, por que a bruxa morreu?"


- "Por que ela era má, meu filho?"


- Mamãe, o papai morreu porque ele era mau?"


Ops! Xeque à rainha, caso isso fosse jogada decisiva no xadrez. Mas, se no xadrez não o é, não raras vezes na vida é. Afinal, Jesus morreu, mas ressuscitou; a vovó virou uma estrelinha (quando não, foi retirada viva da barriga do Lobo Mau); Guimarães Rosa dá uma força e tanto, ao dizer que "O mundo é mágico. As pessoas não morrem; ficam encantadas" e, de encantamento em encantamento, até beijo de príncipe encantado ressuscita princesas.


A criança precisa de seu mundo da fantasia, obviamente. Povoado de princesas, ogros, madrastas, caçadores, lobos maus, bruxas, fadas, papais reais... Ops! Papais reais?


- "Doutor, eu não falei ainda para o meu filho que o pai dele morreu!"


- "Compreendo. Meus sentimentos. E ele faleceu quando? Quando seu filho pergunta, o que a senhora responde?"


- "Ele morreu há três meses. Meu filho me pergunta onde está o pai e eu digo: 'Viajou'".


- "Compreendo. E não era muito comum seu marido viajar? Quando ele o fazia, não era comum manter contato?"


- "Não, era muito comum: ele viajava muito. Foi exatamente num acidente na estrada que ele morreu. E ligava diariamente para mim e para o filho!"


Algo me diz que temos um problema para além do contar ao filho sobre a morte do pai. O buraco, não tão passível de ser recapeado, como numa estrada, é mais embaixo.


- "Se ele ligava sempre, seu filho não está estranhando?"


- "Está e me pergunta. Mas eu digo: 'Sei lá!'"


O que são três meses de "Sei lá!", conversas sussurradas, "só um cisquinho" caindo nos olhos, pessoas brincalhonas repentinamente mais taciturnas, a vovó, outrora animada, roupas coloridas e dançando com o netinho, agora só de preto, calada, incapaz de olhar o retrato do filho sobre a mesa de entrada do apartamento da nora e do neto?


Papais viram estrelinhas. Tudo bem; pode ser. Até mesmo caso ele fosse atleticano e contrário ao PT, as estrelinhas podem ser vermelha ou amarela, de campeão estadual ou nacional. Solução existe, mas: cadê o pai para jogar futebol, como fazia?


Mudemos dos lenços de papel para o papel dos livros: revoltar-se contra a morte de alguém de carne e osso, ou de um personagem, não é prerrogativa infantil. Caso clássico, no que tange a personagens, é o detetive Sherlock Holmes.


Disposto a dar cabo de sua genial criação, o escritor (Sir) Arthur Conan Doyle caprichou na aventura "O Problema Final", na qual Holmes e seu arqui-inimigo Professor Moriarty caem de um penhasco, após renhida luta, e ambos perdem a vida.


Erro de cálculo de Conan Doyle: os fãs apaixonados do detetive ficaram inconformados com o trágico destino do herói (ainda mais igualado ao do gênio do crime; Holmes o descreve como o "Napoleão do Crime") e exigem a volta de Holmes, obrigando o autor a "ressuscitá-lo" na aventura "A Casa Vazia" (título que um psicanalista não deixa de associar à mamãe, ao filhinho e à vovó acima citados, da vida real), às custas de uma engenhosa explicação (Doyle tirava isso de letra) sobre o que ocorrera de fato com o detetive, quando da queda do penhasco.


Não entrarei no mérito das cinco fases do luto, identificadas pela Psicologia, mas permito-me chamar a atenção para uma retomada nas narrativas infantis, de uns tempos para cá.


Muitas mães cresceram ouvindo clássicos da Literatura Infantil recontados, de forma a suavizar suas narrativas originais. Quem ler "Contos de Andersen", editados pela Paz & Terra, com ilustrações originais, talvez se assuste com o vocabulário "adulto" das narrativas. Nada de tratar crianças como débeis mentais, com vocabulário reduzido e dourar a pílula. O vocabulário é denso - ouso dizer, até mesmo para muitos adultos -, as narrativas são fortes, mortes acontecem até mesmo por amor e de forma trágica (o soldadinho de chumbo, em texto homônimo, acaba consumido pelas chamas, ao tentar se aproximar da amada; sem nada de final feliz e tudo de "Romeu e Julieta"; e outras narrativas nas quais bonzinhos e apaixonados não terminam "felizes para sempre" acontecem em bom número).


"Felizes para sempre" é algo complicado, quando é sabido que a vida não é para sempre e tem-se que lidar com isso.


Não existem mais bonzinhos que sobrevivem e mauzinhos que morrem, amiguinhos legais e inimiguinhos não legais.


Quando dos meus bons tempos de Grupo Escolar (algo próximo da Idade Média), lembro-me de uma revolta em decorrência de uma professora ter indicado aos alunos o livro "Meu Pé de Laranja-Lima", considerado inadequado, por algumas zelosas mães.


Quase perseguiram a coitada da professora e a fizeram cair do penhasco (o que só prova que detetives bonzinhos, como Holmes, e bruxas más, como a da Branca de Neve, têm algo em comum, o que ratifica meu pensamento), por conta da indicação.


Hoje, a meninada está mais próxima da literatura infantil não diluída e "europeia": um garoto tem como amigo "O Pequeno Vampiro", o destino do hobbit Frodo, após a aventura em "O Senhor dos Anéis", não é lá um final feliz junto com a 'turma", em sua aldeia, e convenhamos: na verdade, nossos "simpáticos" personagens até mesmo dos desenhos animados nada têm de bonzinhos, não? Que o digam o camundongo Jerry e o Pica-Pau, sacanas até onde podem.


Será que as crianças leem e veem livros, historinhas e desenhos animados de forma tão alienada, ou nós, com nossa ânsia de preservá-los, é que os "encantamos"?


Mas será mesmo que só os maus morrem?


É algo cuja resposta é única para todos, mas cuja compreensão é muito individualizada, assim como tudo na vida. E aí entra a Psicologia, construindo a percepção que cada um tem de si, do mundo, de quem passou e de quem está em nossas vidas.


Afinal, basta lembrar o sofrimento das crianças, décadas atrás, quando o peixinho dourado que ganhavam na escola morria, os dos coleguinhas não, e dá-lhe será que não foi um bom menino (ou menina), não cuidou direitinho do peixinho?


Pessoas, peixinhos dourados, cãezinhos morrem. Diz o cineasta Don Bluth, que, no último caso, "Todos Os Cães Merecem o Céu". Por sinal, a cena, na qual o cão (em tese nada bonzinho) diz à garotinha: "Adeus nunca é para sempre!", ilustra a coluna.


Por vezes não o é por razões outras. Há pessoas que, se não bem trabalhadas certas perdas, nunca dão adeus a seus mortos e os trazem não no coração, mas na mente, impondo-se um sofrimento descomunal e, por vezes, paralisante.


Não só a morte tem seus mistérios; a vida também os tem. E não dá para pedir a um "autor" externo para escrever uma nova aventura. Mas dá para ser autor da própria aventura de viver, com uma pequena ajuda da Psicologia.

* Augusto Carlos Duarte é psicólogo clínico, tendo como referencial a Psicanálise. Presta atendimento individual a crianças, jovens, adultos e idosos, bem como terapias de casal, ou em grupo. Possui graduação também em Comunicação Social (Jornalismo). É colunista da Rede Psicoterapias, onde escreve às sextas sobre Psicologia e Cultura. E-mail: augduarte2@gmail.com


 
 
 

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