Mães de anjos
- redepsicoterapias
- 3 de set. de 2014
- 3 min de leitura
Há um ano e meio atrás empreendi a tarefa de escrever sobre o luto de natimortos. Um tema muito complexo, desconhecido para muitos e ainda pouco abordado na Psicologia. Em nenhum momento do curso falamos sobre isso, e o interesse surge, na maioria das vezes, somente quando perdemos alguém na nossa família e nos deparamos com o caminho de dor e incompreensão que é para uma mãe, e todos da família, ir à maternidade e voltar de braços vazios.
O que me fez retomar essa semana foi uma matéria que vi no site Catraca Livre, retratando uma família americana que decidiu fazer um ensaio fotográfico com o bebê que faleceu antes do nascimento. Muitos comentários se seguiram, divergindo nas opiniões se essa seria uma maneira de somente de explorar o sofrimento, pensando no mundo dos “selfies” ou uma maneira de lidar com o sofrimento e guardar a lembrança do bebê.
Embora pareça distante e improvável, segundo índices da ONU (2011), cerca de 7200 bebês nascem mortos todos os dias, 98% em países de baixa renda. No Brasil os índices são de 19,3 nascidos mortos para cada 1000 nascidos vivos, mas o número é bastante regionalizado, sendo as regiões Norte e Nordeste concentram as maiores taxas de mortalidade.
No geral, existem poucas pesquisas ligadas à psicologia e perda fetal tardia. O tema ainda é visto como tabu; algo que as pessoas evitam falar. É evidente que pensar sobre isso quando existe uma gravidez na família é algo muito dolorido, mas quando ocorre, as famílias e equipes de saúde se mostram desamparadas e pouco preparadas para lidar com o evento. Quando a família é surpreendida com a morte perinatal, como agir então?
O sistema único de saúde (SUS) possui um manual de práticas e condutas fetais indicadas às equipe de saúde, recomendando que a mãe - e se possível toda a família - tenha contato com o bebê. Isso envolve guardar lembranças dele, como a marca dos pezinhos, uma mecha de cabelo ou mesmo fotografias – pequenos detalhes concretos que simbolizam a existência do pequeno. Quando o bebê morre antes de nascer, a única que mantém lembranças do contato é a mãe que viveu a gestação, e a família pode sentir que tudo aquilo “não existiu”.
Negar a existência do bebê ou evitar o contato pode ser uma alternativa para não sofrer no primeiro momento, mas nem sempre é a melhor solução. Muitas famílias passam por períodos de negação da elaboração do luto e lidam como se o bebê não tivesse existido, o que acaba por não dar à mãe espaço para expressar seu sofrimento. Daí vem a iniciativa das “mães de anjo”, mulheres com quem trabalhei em minha pesquisa, que se unem para dividir a dor de perder os natimortos (denominados anjos) com aquelas que passaram pela mesma coisa, e que compreendem a vivência uma das outras.
Elas dizem o quanto é difícil viver uma dor que a sociedade não compreende, não aceita como real e não dá espaço para lidar com ela. É muito importante que as equipes de saúde estejam atentas à importância do contato e tenham sensibilidade com o sofrimento e às vezes revolta da família. Muitos hospitais sequer permitem que a mãe escolha se terá ou não contato com o bebê, e mesmo quando oferecem a mulher pode estar medicada ou muito abalada para escolher, o que acaba resultando em mais silêncio.
Ter contato com o bebê auxilia a entender que, embora não tenha nascido vivo, o bebê conviveu com a mãe, e indiretamente com a família por meses. Nesse tempo, são criadas muitas expectativas e desenvolvidos laços de afeto, tão difíceis de romper como qualquer outra perda. Comentários como: “podia ser pior se tivesse convivido com o bebê”, “que bom que faleceu cedo para não sofrer” não auxiliam na elaboração da dor e podem apenas aumentar a confusão de sentir uma dor por perder o bebê “que não nasceu”.
Desse modo, o ensaio fotográfico pode causar ao expectador uma sensação de estranhamento, mas é um modo bacana de concretizar a existência do bebê e guardar essa lembrança. As fotos se tornam um rito, permitem a expressão da dor e podem ser o primeiro passo para seguir em frente.
Link da reportagem: https://catracalivre.com.br/geral/catraquinha/indicacao/pais-fazem-ensaio-com-bebe-que-morreu-durante-a-gestacao/
*Sabrina Lima é estudante de psicologia pela PUC-SP, é colunista da Rede Psicoterapias, onde escreve às quartas-feiras sobre cotidiano e contextos de crise em clínica ampliada. Além da Psicologia, é amante de música e das palavras, e atualmente se dedica ao estudo da escrita e suas formas de expressão como recurso terapêutico.
Commentaires