A morte, a infância e as filas da vida
- redepsicoterapias
- 8 de set. de 2014
- 3 min de leitura
Sexta feira passada consegui ingresso para um dos programas super requisitados de São Paulo, a peça “The Old Woman”, dirigida por Bob Wilson. O Sesc estava lotado. No estacionamento não havia mais vagas e não sei qual fila era maior: para comprar comida, para pegar um café ou aquela composta pelas pessoas que não tinham conseguido ingresso e esperavam obtê-lo ali em cima da hora.
As filas de São Paulo se formam cada vez com mais freqüência e com números recordes de pessoas a esperar. Esse é um assunto quase clichê por aqui. Já foi capa de algumas revistas e de muitos debates, que se estruturam entre o absurdo de esperar quarto horas para ver uma exposição às pressas e a qualidade dos programas culturais da cidade. A história das filas se repete, na prática e nos textos, e não resisti a dar esta pincelada sobre o tema - que realmente impressiona -, mas o que gostaria mesmo de iluminar deste meu programa todo é uma passagem da peça.
Lá pelo final da história os personagens comentam não suportar nem crianças, nem pessoas mortas. Apesar dos muitos estímulos da peça, tal aversão é que ficou martelando na minha cabeça. Por que mortos e crianças?
A mim, parece que os mortos e as crianças fazem com que nos deparemos com duas das poucas certezas da vida. Uma delas, a óbvia finitude, que estagna o humano e o torna impotente. Deste lado, nada mais é possível, o morto não age. Depois da morte, nada mais importa. E antes dela, onde se encontra aquele que vê o cadáver, algo importa?
Já as crianças trazem à tona a vivacidade, a potência de quem pode tudo. Ou melhor, de quem quer tudo, de quem tem vontade de viver. A potência de ainda poder ser um monte de coisas, um monte de coisas que nós, crescidos, não fomos. O presente carrega este monte de não seres e as crianças escancaram aqueles que não fomos, aquilo que não fizemos. Ainda em crescimento, não se é de forma fechada, há o mundo pela frente. Quando esse mundo fica para trás, a certeza que se vislumbra à frente é o fim.
E andando em círculos, sem sair da fila, pensei que talvez as filas nos dêem a ilusão de que há algo divertido, interessante e que muita gente acha legal à nossa frente. Esperar não (apenas) para estagnar, mas para vivenciar algo. Uma espera longa para ter a sensação de que a vida está sendo aproveitada, de que apesar dos não seres, somos alguém. Alguém tentando preencher e dar significado para a vida. Enquanto a morte não chega.
Abaixo, um trecho, em inglês, do texto de Daniil Kharms, do qual a peça “The Old Woman” foi adaptada. O texto na íntegra pode ser lido aqui.
-- How do you feel about the dead? -- I asked Sakerdon Mikhailovich.
-- Completely negatively -- said Sakerdon Mikhailovich. -- I'm afraid of them.
-- Yes, I can't stand dead people either -- I said. -- Give me a dead person and, assuming he's not a relative of mine, I would be bound to boot him one.
-- You shouldn't kick corpses -- said Sakerdon Mikhailovich. -- I would give him a good booting, right in the chops -- said I. -- I can't stand dead people or children.
-- Yes, children are vile -- agreed Sakerdon Mikhailovich.
-- But which do you think are worse: the dead or children? -- I asked.
-- Children are perhaps worse, they get in our way more often. The dead at least don't burst into our lives -- said Sakerdon Mikhailovich.
-- They do burst in! -- I shouted and immediately stopped speaking. Sakerdon Mikhailovich looked at me attentively.
-- Do you want some more vodka? -- he asked.
*Luisa Rosenberg é psicóloga clínica junguiana, graduada em 2011 pela PUC-SP. Aos sábados, escreve sobre as coisas do cotidiano; “crônicas psicológicas” falando, muitas vezes, sobre as artes para tentar falar da vida.
E-mail: luisarosenbergcolonnese@gmail.com
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