Educar para ser criança
- redepsicoterapias
- 3 de fev. de 2015
- 3 min de leitura
Atualmente, é muito comum a ideia de que educar significa desenvolver habilidades intelectuais e sociais em uma criança para que ela possa viver como uma adulta ‘educada’ na nossa sociedade. No entanto, será o educar um processo que serve apenas como um meio para que uma criança transforme-se num adulto? Pensar a infância como um meio para a vida adulta, e tratá-la dessa forma através da educação-para-alguma-coisa, é deixar de lado uma boa parte da nossa existência sem o seu devido propósito.
Vou explicar. A todo o instante, estamos a questionar-nos, para que serve... Para que serve a vida, para que serve estudar, para que serve ter amigos, enfim, a vida nos causa estranheza, pelo menos, de vez em quando. Essas questões não são apenas intrigantes para os adultos, mas para as crianças também. Afinal, desde pequenas têm de lidar com a própria vida, com decisões, com questionamentos, com as diversas sensações e emoções, com o pai, com a mãe, com a professora, com os amigos, com as doenças que porventura podem aparecer. Isso tudo muito tem a ver com a vida da criança, ela não precisa ser adulta para vivenciar tais conflitos, angústias, medos, indecisões. A forma como ela lida com todos estes fenômenos da sua vida é que nos causa profunda inquietação, a nós adultos, por isso, tentamos a todo custo entender, compreender e atribuir significados para dar sentido às ações infantis, as quais algumas vezes nos parecem tão inusitadas.
As questões vivenciadas pelas crianças são muito parecidas às questões que vivenciamos como adultos e, muitas vezes, a dificuldade que temos de lidar com a criança – ou com a forma como a criança vivencia as situações – é oriunda da nossa própria dificuldade de lidar com as questões da existência. São várias as possibilidades que cabem aqui, por exemplo, o que fazemos diante da morte, da agressão de outra pessoa, do conflito, das brigas?
Pessoas com quem convivemos poderiam dizer “Estou certa que este choro é de birra” e “Mãe, você tem de ser mais dura e mostrar quem manda” ou teorias psicológicas poderiam afirmar que as crianças aos três anos desenvolvem-se assim ou assado. Muitas são as explicações que já temos prontas e disponíveis para os comportamentos infantis.
No entanto, o psicólogo francês Henri Wallon alerta-nos:
“A criança não sabe senão viver a sua infância. Conhecê-la pertence ao adulto. Mas o que é que vai prevalecer neste conhecimento: o ponto de vista do adulto ou o da criança? [...] Se o homem sempre começou por se colocar a si mesmo entre os objetos do seu conhecimento, atribuindo-lhes uma existência e uma atividade conformes à imagem que faz da sua própria existência e atividade, quanto não deve ser forte esta tentação a respeito dum ser que dele procede e que a ele se deve tornar semelhante - a criança, cujo crescimento vigia e orienta e a quem muitas vezes parece muito difícil não atribuir motivos ou sentimentos complementares dos seus”. (WALLON, pág. 27, 1968)
Na obra ‘A evolução psicológica da criança’, Wallon chama a atenção para pensarmos o quanto de nós, adultos, não está naquilo que pensamos ser da criança quando conferimos à infância explicações e significados a partir do nosso próprio ponto de vista. O problema é que essas explicações elaboradas de forma genérica – sem conhecer a criança singularmente em seu contexto, ao invés de auxiliar-nos na compreensão da criança que se apresenta, podem acabar ofuscando a sua unicidade num mar de atribuições, as quais supostamente serviriam a todas as crianças. Compreender a criança como um desconhecido que está apenas vivendo a sua vida singularmente dentro de suas possibilidades existenciais é permitir uma aproximação mais verdadeira com a infância dessa criança para, a partir dela mesma, derivar seus significados e necessidades.
Nesse sentido, educar deixaria de ter apenas o sentido de preparar para alguma coisa, para um futuro, para uma vida adulta, e tonar-se-ia um processo de escuta, acolhimento e compreensão a cada instante com vistas às necessidades atuais da criança e não às necessidades de um suposto modelo ideal de adulto que ainda está por vir.
Referência: Wallon, H. A Evolução Psicológica da Criança. São Paulo: Edições 70, 1968
Tamara Fracalanza é psicóloga administradora, estudante de filosofia e poeta nas horas vagas. Escreve para a Rede Psicoterapias às terças-feiras sobre "Infância, Educação e Escola".
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