Sobre o posicionamento político da profissão de psicólogo
- redepsicoterapias
- 7 de fev. de 2015
- 5 min de leitura
Alguma coisa me intrigava quando via colegas ou desconhecidos que pregavam ideais de emancipação através, unicamente, de meditação, yoga, ditatura do amor contínuo e ligação imagética com a natureza. Explico. Antes, colocarei um trecho do conto Enfermaria n° 6 que contém falas de duas personagens, que foi o que me fez entender o porquê da inquietação. A primeira fala é do médico responsável por aquela enfermaria e a segunda é uma resposta do seu paciente:
"- Pode-se não sentir o frio, assim como qualquer dor. Marco Aurélio afirmou: 'A dor constitui numa (sic) representação viva da dor: fazer um esforço de vontade para modificar essa representação, repele-a, cessa de te queixar, e a dor desaparecerá'. Isso é justo. Um sábio ou simplesmente um homem que pensa, que reflete, distingue-se dos demais justamente por desdenhar o sofrimento; está sempre contente e não se espanta com nada. [...]
- [...] Ela teve êxito somente com a minoria que passava a vida estudando e saboreando toda espécie de doutrinas, mas a maioria não a compreendia. A doutrina que prega indiferença à riqueza, às comodidades da vida, o desprezo pelos sofrimentos e pela morte, é de todo incompreensível para a imensa maioria, pois essa jamais conheceu a riqueza nem aquelas comodidades; e desprezar os sofrimentos significaria para ela desprezar a própria vida […]" (Tchékhov, 1892)
Esse trecho do conto do Tchékhov mostra como o médico enxerga o sofrimento do paciente daquela enfermaria pela qual ele é responsável. Só que tem um problema. Esse médico há anos acomodou-se em seu cargo público e não realiza mais visitas àquela ala (semelhanças com a universidade pública não são coincidência). Ou seja, sua visão é romantizada e não parte da escuta daquilo sobre o que o paciente está falando. A fala do médico antecipa algo que existe só para ele e, mais que isso, coloca um modo de vida que não é possível a todos, muito menos àqueles pacientes. Ele suprime o conflito da existência humana a partir de algo que vem exclusivamente do indivíduo, de seus pensamentos, sua consciência. Isso é impossível, a partir da psicanálise. A sociedade vive na tensão constante da ética do desejo, do conflito entre aquilo que desejamos e aquilo que queremos/podemos/devemos/iremos realizar. E, pelo processo de constituição psíquica só ser possível pela convocação que a cultura faz ao nascituro, não dá para pensar que o sujeito, sozinho, é capaz de se satisfazer e estabelecer uma condição de autossuficiência. Não existe cultura fora da comunidade, e, muito menos, sociedade sem sofrimento.
Dessa forma, exercícios de meditação e introspecção podem configurar um estado emocional mais ou menos favorável à conquista de melhores condições de existência, mas não é isso que possibilita o meio, a articulação, o movimento. Em uma perspectiva egoísta e que não propõe nada, pode bastar pensar que devemos emanar amor a todo instante e não lidar com sentimentos e pulsões contraditórios, que ter uma ligação com a natureza (ou com aquilo que se elege como o melhor da sociedade) se dá através da imagem, aparência, cores, roupas, cabelo, trazendo uma espécie de sentimento oceânico e achando que isso basta. Acontece que em uma perspectiva política, isso não basta, simplesmente porque isso não é possível a todos, e, mais importante, porque traz traços identificatórios que não são necessariamente aquilo que rege nossos atos.
A fala do paciente do conto bem representa a luta de classes, a necessidade, a injustiça, o erro categórico de achar que um estado de espírito pode resolver o mal-estar inerente à sociedade. Sendo o conflito insolúvel, resta se posicionar frente àquilo que podemos, devemos, queremos e decidimos fazer. Ou seja, resta, dentro de uma perspectiva ética, resolver aquilo que vai ser feito. Isso é política, independente do posicionamento que se irá tirar. Na psicologia, essa discussão é inevitável. Não é possível ouvir a fala de um paciente ou usuário de serviço de saúde ou assistência sem ter um posicionamento frente à ética da profissão. O posicionamento não precisa ser o mesmo na classe profissional inteira, mas não pode acontecer de ele não ser claro ou não existir. Se o posicionamento de um psicólogo não for crítico ou não estiver claro para ele mesmo, provavelmente está exercendo mal a profissão.
A psicologia é um conjunto de princípios éticos, a saber, os que constam no código de ética do psicólogo, ou seja, de partida, já é uma discussão sobre sofrimento humano, conflitos. E o posicionamento não é só moral, é mais do que isso; perpassa o sinthome, ou seja, a forma como o sujeito amarra suas próprias contradições e subjetividade. A escolha da profissão de psicólogo não deveria servir para auto promoção, para fins que partem da identificação, da imagem, de aspectos egóicos e imaginários. A prática da psicologia e o posicionamento político e profissional daqueles que querem atuar nesse campo só é possível se essa prática condizer com a forma que o sujeito se constitui. O sujeito ou a subjetividade se faz constantemente, e assim se faz o psicólogo: em uma demanda constante, em um fazer-se, em uma amarração de conflitos que não cessam.
No entanto, tratando-se da amarração que é feita para enodar as contradições da existência, não se trata somente da dimensão consciente. Trata-se principalmente daquilo que fazemos sem perceber, do que falamos sem nos ouvir e do que somos onde não nos percebemos. Desta forma, é possível que alguém trabalhe com psicologia destruindo-a, ou enaltecendo-se. É possível que as pessoas que encabeçam um movimento social façam-no mal, estaquem-no, sem perceber. Ou seja, não se trata simplesmente de auto conhecimento, de teorias, de estudos, mas de um saber que é possível produzir a partir da investigação de como o sujeito funciona – o sujeito psicólogo, o sujeito paciente/usuário, as instituições envolvidas. Esse saber é o que permitirá que se avalie as ações da prática profissional: elas estão sendo sintomáticas e burlando os próprios objetivos do planejamento ou está condizente com o discurso do profissional? Trabalhar com psicologia e psicanálise exige que se lide com uma ferida narcísica: a psicologia é uma profissão que procura ser desnecessária, temporária, e não que o paciente ou usuário seja dependente do serviço. Para isso, o psicólogo deve saber se retirar. Na psicanálise, é preciso lidar com o que é doloroso para a partir disso produzir algo, criar algo a partir do sofrimento de forme que esse mesmo sofrimento seja minimizado.
A partir da psicanálise, é possível deduzir se um movimento social ou profissional está indo em direção a transformações ou está cavando a própria cova. Quando uma ação está fadada à desgraça não é porque foi descuidada, mas porque o desejo dos indivíduos ou da instituição era usar aquela movimentação de forma egica. Lidar com pessoas, seja na profissão ou na vida em sociedade, significa abdicar da realização completa das pulsões, mas isso não é só um fardo: ao mesmo tempo em que barra, permite. Justamente por barrar, por haver lei, que é possível que articulemos ações, ideias, pensamentos, história.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. (1930 [1929]). O mal estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, 2009. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.21).
LACAN, J. O Seminário, livro 7. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
TCHÉKHOV, A. P. Enfermaria n° 6, In O Beijo e Outras Histórias, editora Círculo do Livro, a/d.
*Inayá Ananias Weijenborg é psicóloga formada pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP/Câmpus Bauru. Atualmente atende em um centro médico em Campinas-SP e estuda psicanálise. É colunista da Rede Psicoterapias, onde escreve aos sábados sobre "Psicanálise e arte na militância e na saúde pública".
Comments