O existir no silêncio, na dor e no choro: quando a terapia é libertadora para paciente e terapeuta
- redepsicoterapias
- 13 de fev. de 2015
- 5 min de leitura
Segundo os dicionários, a palavra existir significa “ser num dado momento ou atualmente; viver; possuir existência verdadeira, estar ou haver”. Cada um de nós vivencia sua existência de uma forma, seja existindo, estando, vivendo, permanecendo ou simplesmente, estando. Os sentidos da existência são encontrados no dia a dia de cada indivíduo, nas pequenas e corriqueiras ações que ele toma, ou não. Assim começa nosso percurso ao longo dos textos sobre a existência, com situações simples, diárias e que às vezes passam despercebidas, mas que nos mostram que existimos.
Era um dia comum, onde o amanhecer não parecia trazer nada de novo, ou melhor, nada que pudesse surpreender e modificar a continuidade cotidiana; mas, pensando bem, não era um dia comum, aliás, nada seria igual após aquele dia.
É interessante pensarmos em como as ações, as escolhas e as representações do ser humano podem influenciar e modificar tudo que está a sua volta. Falar da constituição humana é compreender as mais variadas facetas com que cada ser possa se encobrir e se admitir enquanto único e, ao mesmo tempo, igual aos outros.
Não era um dia comum, nada se atrevia a ser comum naquele momento. Tudo o que ele pensava acerca de suas fantasias, desejos e sonhos, naquele dia, deixara de existir na caixa de ilusões, uma vez criada para preservar suas melhores fantasias e alegrias e que, lançada à realidade, se via exposta num mundo desconhecido e irreal: a caixa das ilusões se abria à realidade e, os sonhos passaram a se confrontar com as dificuldades reais da vida. Nada mais seria comum depois daquele dia.
Pois bem, não era mais um dia comum. Tudo se deu por volta das 13 horas de uma quarta-feira. Foi assim, dessa forma, que se iniciou o trabalho psicoterápico com aquele jovem homem que se apresentava no consultório.
Todo primeiro contato do terapeuta com o paciente é cercado de anseios, dúvidas, medos e até um pouco de “divindade” recai sobre o terapeuta, como se esse fosse o salvador ou o possuidor de todas as respostas para as dificuldades dos pacientes. Com esse paciente, que vou chamar de João, não seria diferente: assustado, nervoso, ressabiado e pouco confortável, ele se apresentava a minha frente. Havia algo que era perceptível desde o primeiro momento em João, trazia em seus olhos lágrimas carregadas de tristeza e dor.
Após o primeiro contato, um silêncio manso e pesaroso tomou conta do lugar. Não era necessário que eu dissesse nada naquele momento, não era minha vez de falar. João se sentia confortável com o silêncio. Na realidade, ele se sentia acolhido naquela sala. Era latente que sua busca naquele dia era apenas de um lugar em que pudesse parar, sentir-se e fazer o que queria: chorar. E foram, assim, longos momentos de intenso silêncio quebrados apenas pelo choro contido e contínuo de João.
Não era o momento de intervenções, explanações ou de pontuações psicológicas; não era o momento do terapeuta, era o momento, não do paciente, mas o momento daquele jovem homem se libertar e deixar que as lágrimas expulsassem e aliviassem um pouco da tristeza que trazia em seu coração.
O fato é que, depois daquele dia, nada seria como antes, nem para João e nem para mim, terapeuta...
Ao transcorrer o tempo desse primeiro contato, no qual não houve troca de palavras ou informações, João se levantou, agradeceu o tempo em que ali esteve e se despediu. Ao sair, João já não era mais o mesmo; aliás, desde o momento que o paciente entra pela porta do consultório pela primeira vez, ele já não é mais o mesmo, nem o terapeuta.
Muitos dos sentimentos carregados nos olhos de João ao entrar no consultório já se desfaziam quando ele saiu. Não que esses sentimentos, possíveis tristezas, decepções, amarguras ou dúvidas tivessem se dissipado, mas, ao se permitir – e essa palavra marcou muito as sessões de João – chorar e tentar ser para si o que ele realmente era, fez com que algo dentro de si se rompesse e uma enxurrada de emoções viesse à tona. O primeiro passo na longa estrada havia sido dado.
Nas aulas práticas da faculdade, sempre ficava me perguntando se o choro do paciente seria algo benéfico ou não na terapia. Como resposta, óbvio, era dito que tudo dependia do contexto em que esse choro se manifestava. Ora, se o choro viesse frente a uma comoção de uma boa notícia ou de um relato alegre, esse poderia tornar-se benéfico. Mas se ele viesse como uma forma de exteriorizar uma dor ou um sentimento de aprisionamento seria mais benéfico ainda. Contudo, nunca haveria um momento em que o ato de chorar tornar-se-ia ruim?
Depois deste primeiro encontro com João e depois de experiências vivenciadas, percebi que o choro, na maioria das vezes, trará benefícios para o indivíduo. O fato de o sujeito chorar demonstra que algo que está lá no seu mais profundo íntimo está pedindo para sair; pode ser algo no inconsciente, algo que ele trás em seu coração ou simplesmente algo que acontece no momento do choro; mas é sempre uma resposta a um sentimento a que só o próprio sujeito poderá dar significado. João demonstrou em seu choro a necessidade de exteriorizar algum tipo de sentimento que o estava sufocando.
Ao terminar a sessão, estando sozinho, pude ter a resposta para aquela dúvida da faculdade: o choro não é ruim ou bom, o choro simplesmente é. Faz parte do sujeito e, para cada um, será um significador ou um decodificador dos seus sentimentos.
O choro não precisa ser procedido de intervenções se, em seu momento, o paciente escolhe chorar e desfazer os blocos das dúvidas e angústias.
Existir nem sempre é realizar grandes obras como se essas fossem as marcas que deveríamos deixar para que os outros pudessem se lembrar de ou entender que estamos aqui, vivos, cheios de vida, de energia, de vitalidade; existir é antes de tudo, entender primeiro que, antes de vir à vida, antes de pertencer a essa gama de composição de partículas e particularidades, vivenciamos o silêncio, a reflexão, a dor e a solidão. Existir é não ter medo de quem eu sou, dos meus sentimentos, das minhas aspirações, dúvidas e temores.
Com João, esse foi o primeiro contato, o primeiro choro, as primeiras angústias desfeitas. Foi o primeiro passo para um dia que não teve nada de comum. Para João, foi a primeira sessão de terapia; para mim, foi minha libertação como sujeito, paciente e terapeuta. Entendi que esse João pode ser José, Joaquim, Maria, Ana... Enfim, esse João somos todos nós, sou eu e você, somos nós quando entendemos que existimos e, no nosso silêncio, fazemos o que nos é permitido e o que nos permitimos: libertar-nos de sentimentos que aprisionam nossa existência e nosso existir.
Heder Batista Naves
hedernaves@uol.com.br
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