Carnaval desmascarado
- redepsicoterapias
- 1 de mar. de 2015
- 4 min de leitura
“O poema essa estranha máscara mais verdadeira do que a própria face”
- Mario Quintana
Eu sempre gostei de entender as datas festivas, saber por que determinado evento é comemorado em tal data e não em outra, e qual a origem disto tudo. Atualmente eu descobri algumas coisas interessantes sobre o carnaval, que só reforçam algo que venho percebendo: uma inversão completa dos valores originais das festividades.
O Carnaval tem esse nome, que é a junção das palavras latinas carnis com levalis ou valles. A primeira significa carne, e a segunda abstinência. O Carnaval era uma festa na qual as pessoas se preparavam para um período de ausência de carne: comida e sexo. Como se sabe, a igreja católica adotou, integrou e assimilou uma série de símbolos e rituais de diferentes culturas ao longo de sua existência, e, não por coincidência, o Carnaval acaba na quarta-feira de cinzas, dia que se inicia a Quaresma.
Até hoje é possível encontrar resquícios destas tradições e ver algumas pessoas não comendo carne às sextas-feiras durante a Quaresma, ou então, como é o mais comum, fazendo ‘sacrifícios’ como remover o refrigerante durante este período.
Mas o mais interessante é ver como toda essa preparação parece ter invertido completamente seu valor. As datas que deveriam servir para uma preparação para um período de abstinência, hoje, são ícones exatamente do contrário. Sexo é importante e saudável, mas como em tudo na vida, é necessário equilíbrio. A época de Carnaval é a data que mais dá dor de cabeça para agentes da saúde pública.
Enquanto no resto do mundo o número de infectados pelo vírus da Aids diminuiu em 28%, no Brasil este número aumentou 11%, segundo o Unaids, um programa da ONU sobre o HIV. Na Vila Madalena, famosa pelos ‘bloquinhos’ em São Paulo, houve uma infinidade de notícias que denunciavam sexo explícito sendo feito em vias públicas, além é claro de muito alcoolismo e confusão.
Evidentemente, a mídia não ajuda. A Skol fez uma péssima ação publicitária no carnaval que tinha slogans como “Deixe o Não em casa” e “Topo antes de saber a pergunta”. Para muita gente, principalmente mulheres, a publicidade incentiva estupro e promiscuidade, além de ter conteúdo machista . Felizmente foi rechaçada nas redes sociais, assim como a enquete feita pela rede Globo da Bahia que ‘questionava’ se “Beijo forçado no Carnaval deve ser proibido?”. Claro que deve, e não só no carnaval!
Notamos que o carnaval mexe um pouco com a cabeça das pessoas, não? Vamos tentar entender um pouco o motivo. Aproveitando a onda carnavalesca, gostaria de falar um pouco sobre um conceito da psicologia analítica chamado Persona. A palavra persona vem do latim persõna e significa máscara, objeto comum de se ver nas festividades desta época. Podemos entender como persona o papel social que criamos para poder viver em sociedade. Este papel intermedeia nossas relações e o criamos através de referências do que a sociedade julga certo e errado. Ele é, basicamente, aquilo que queremos mostrar para os outros que somos.
No entanto, como já sabemos, a unilateralidade da psique pode ser prejudicial. Quando concentramos energia demais para criarmos essa personalidade superficial, acabamos por negligenciar alguns aspectos de nós mesmos, que existem, mas que preferimos ignorar. Este repertório de coisas reprimidas e negligenciadas, a psicologia analítica entende por Sombra e nela habita todo um potencial de coisas que preferimos não aceitar pelo medo da rejeição social que isso implicaria.
“A sombra e a persona são ‘pessoas’ estranhas ao ego que habitam a psique junto com a personalidade consciente que nós próprios sabemos ser. Há a ‘pessoa pública’ e oficial a que Jung chamou de persona, a qual está mais ou menos identificada com a consciência do ego e forma a identidade psicossocial do indivíduo. E, no entanto, é também, tal como a sombra, alheia ao ego, embora o ego se sinta mais a vontade com a persona pelo fato de ela ser compatível com normas e costumes sociais. A personalidade da sombra não está visível e só aparece em ocasiões especiais. “(STEIN, 1995)
Mas quais ocasiões especiais seriam essas? Talvez o Carnaval seja uma delas. Nos forçamos tanto para ser alguma coisa que não somos, que na primeira oportunidade de vestir uma máscara física, retiramos nossa máscara simbólica e mostramos quem realmente somos e o que temos vontade de fazer.
“Pensamos que nossas máscaras mantêm nosso eu interior escondido, mas, todas as vezes que nos recusamos a reconhecer aspectos nossos e quando menos esperamos, ele dá um jeito de erguer a cabeça e fazer-se conhecido”. (FORD, 1998)
É de extrema necessidade, portanto, que nos tornemos conscientes desse lado sombrio que nos habita, pois só assim poderemos nos beneficiar de uma vida psíquica integrada e equilibrada, sem ficarmos a mercê de induções coletivas para sermos verdadeiramente livres.
Não espere o carnaval para dançar, para ser feliz e muito menos para expressar sua sexualidade. Faça isso diariamente, com bom senso. Aceite suas imperfeições, assuma que tem vontades e desejos, lide com eles, não os negue. Como diria Jung: “Ninguém se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas tornando a escuridão consciente".
Depus a Máscara
Depus a máscara e vi-me ao espelho. –
Era criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha.
Álvaro de Campos, in “Poemas”.
Heterônimo de Fernando Pessoa
Referências Bibliográficas:
FORD, Debbie. O Lado Sombrio dos Buscadores da Luz. São Paulo: Cultrix, 1998.
JUNG, Carl. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1991.
STEIN, Murray. Jung – O Mapa da alma. SP: Cultrix, 1995.

Comments