Clínica ampliada: a política que revê como enxergamos a psicologia clínica
- Inayá Weijenborg
- 2 de mai. de 2015
- 5 min de leitura

Entendendo melhor o que quer dizer “atendimento integral ao ser humano”
A psicologia clínica foi vista por muito tempo como o trabalho feito dentro de um consultório, no qual um paciente traz questões cujo tratamento começará e terminará ali mesmo, entre quatro paredes, em um espaço protegido e recluso do mundo. Hoje ainda é comum que se veja assim, mas a bem da verdade é que um trabalho puramente introspectivo não combina com a psicologia, e talvez nunca tenha combinado.
É usual, hoje, se pensar o trabalho do psicólogo dividido em várias áreas: área clínica, social, do trabalho, hospitalar, do esporte, jurídica, escolar, docência e outras que existem ou poderão ser criadas. Essas divisões servem para dizer em qual sistema de serviços o psicólogo lida diretamente e qual o enfoque do seu trabalho, qual sua função no emprego para o qual foi contratado ou trabalha como autônomo. Serve muito bem para fins burocráticos e de funcionamento da sociedade: se uma criança está com problemas na escola, ela pode ser levada ao psicólogo da escola ou similar, mas não a um que trabalhe no RH de alguma empresa – isso não faria nem sentido. Dividir a psicologia em áreas é uma forma de divisão do trabalho, sendo que ele está condicionado à forma que determinada sociedade se constrói. No entanto, não dá para achar que cada uma dessas partes é independente, tanto dentro da psicologia como entre as outras profissões e segmentos da comunidade.
Especificamente na área clínica, é sabido que, para que o trabalho funcione, é preciso considerar de onde o paciente vem, onde ele mora, qual sua história, se tem família e como é sua relação com ela, quais seus hábitos e rotina – e, dependendo do andamento do tratamento, esses aspectos podem ser transformados. Um professor de psicologia de uma universidade pública que não tem computadores (por alguma eventualidade ou defasagem) não pode passar o conteúdo de estudo somente por meios eletrônicos se tiver estudantes que não têm acesso a computador. Existem diversas atitudes possíveis de serem tomadas; lutar para que a universidade tenha computadores, emprestar textos impressos, certificar-se que a biblioteca tenha os livros necessários são apenas as mais óbvias. Da mesma forma, se um paciente traz ao consultório de um serviço público de saúde que sua família está passando fome, é obrigação do profissional que o atende informá-lo de seus direitos de cidadão e os lugares aos quais ele pode recorrer – até mesmo porque não dá para pensar em um tratamento psicológico se o corpo não se sustentar.
O governo garante auxílio financeiro de seguridade social a quem não pode trabalhar, a idosos, a recém-desempregados, a moradores de rua, a famílias com renda insuficiente; existem centros de assistência especializados que oferecem serviços como CRAS, CREAS, CentroPOP e instituições de iniciativa privada de acolhimento a população de rua ou crianças negligenciadas, além de muitos outros serviços existentes para dar proteção, apoio e tentar garantir os direitos fundamentais assegurados em Constituição. Não que tudo funcione como deveria, mas os serviços existem e eles devem ser usados, fiscalizados, cobrados, melhorados, transformados – só não podem ser ignorados. Por isso, é essencial que os profissionais tomem nota dos serviços presentes em seu bairro de atuação, sua cidade, estado, porque muitos não estão listados acima e alguns podem mudar de nome dependendo da cidade. Não é apenas para garantir os direitos humanos, mas é garantir que o atendimento psicológico seja possível e completo.
Essa busca de aparatos tanto da ordem pública como privada – sejam estabelecimentos de saúde, de educação, de assistência, sejam políticas que transcendem as paredes de um prédio – a fim de fazer rede entre eles para fazer dar certo o tratamento de um paciente e/ou sua família, é, de certa forma, a definição do que é clínica ampliada. A clínica ampliada é uma medida adotada pela Política Nacional de Humanização para compor esse movimento que busca fazer cumprir as diretrizes que o SUS prega. Ela é sistematizada pelos órgãos do Governo, como o Ministério da Saúde, mas devemos entendê-la como algo a ser seguido também nos meios privados, inclusive em um consultório particular que um profissional está trabalhando como autônomo. Isso que é o “atendimento integral ao ser humano”, um dos princípios do SUS: a queixa de um paciente surge na sociedade, e não em uma área específica dela. Uma demanda de atendimento parte de um ser humano, ou seja, de um ser que transita no âmbito familiar, no trabalho, na escola, na intimidade, na vida pública – ou até na falta deles. Isso tudo quer dizer que devemos olhar para o paciente como um todo para depois planejar as intervenções, que, inclusive, podem ser planejadas em equipe, quando se dispuser de uma equipe multiprofissional.
O Código de Ética do psicólogo se apoia firmemente nos Princípios e Direitos Fundamentais da Constituição Federal, que coloca como diretriz a busca pela dignidade, prevalência dos direitos humanos, cidadania, soberania, justiça, liberdade e promoção de bem-estar a toda a população brasileira. Talvez não dê para concordar com toda a legislação brasileira, mas é preciso que, enquanto psicólogo, sempre levar em conta que o respeito e promoção de condições dignas de vida são parte do trabalho. E não só na psicologia, como em outras profissões e ocupações. E, quanto ao que não se concorda sobre a legislação e a prática profissional, que se lute para implantar o que considerar melhor.
A psicologia clínica não se restringe ao trabalho em consultório, sendo que ela pode acontecer na rua e em instituições. Mais do que isso, é preciso frisar, tanto para os profissionais como para a população de maneira geral, que para a psicologia clínica funcionar, ela tem que saber quando deve trabalhar com outros profissionais e serviços. Isso se dá de formas variadas que serão avaliadas pelo profissional; cada caso é singular e deve ser construído de maneira personalizada – e, para personalizar, é preciso conhecer as ferramentas existentes no mundo. Essa é a importância de disseminação de informação.
Assim, é possível ver que, apesar de se dividir as profissões em áreas, cada área deve conversar com as demais quando necessário. Isso quer dizer que não é possível ignorar o que acontece do outro lado da porta. Muitos problemas são estruturais, surgem de injustiça social, violência institucional, subordinação da população ao interesse de poucos, guerra desumana pelo lucro, más condições de alimentação, moradia, relacionamentos, lazer. Nesse sentido, não consigo imaginar um psicólogo que não seja militante – é quase contraditório. Para atender alguém na clínica, por exemplo, as pessoas têm que ter acesso a ela. Por isso, devemos pensar qual tipo de sociedade nós queremos, como que os serviços devem ser ofertados, como oferecer meios de locomoção e de disponibilização de atendimento e como veicular informações. Quem atua com psicologia deve entender quais são as condições essenciais para que seu trabalho aconteça e lutar por elas, entendendo que a luta e o trabalho são feitos em grupo.
Inayá Ananias Weijenborg
SP, 27 de abril de 2015

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