Lugares de infância
- Ananda Martins
- 14 de mai. de 2015
- 2 min de leitura

No mundo há uma tribo em que cada um tem a sua poesia, que vai se construindo, coletivamente, enquanto os anos tornam-se somas. Assim se comungam enredos e se entrelaçam, através do movimento dos dias, histórias e memórias de muitas vidas.
Se onde vivo também me contassem através de poesia, diria que esta começaria dentro de uma casa, que tem aos fundos terreiro de terra batida, as paredes descascadas e prateleiras de onde pendem colheres e caldeirões que esperam por comida quente. O fogão é à lenha, e quem a busca é minha avó, que de saia comprida e lenço na cabeça sobe a colina cantando as dores de uma vida.
Os versos seguintes seriam alegres, versos musicados de tão leves. Eles contariam a infância de quem teve a sorte de receber amor. Seriam também versos simples, que andaram em casas mais simples ainda, sempre cheias de flores e café quentinho fumegando no bule. Mas, por terem percorrido mais a casa que a rua, seriam estes versos ingênuos. Versos que não se sujaram de mundo.
Um dia não conseguiram ver só da janela a vida que lá fora parecia ser tão bela. E a menina que antes espreitava da janela, pisou as calçadas de pedra, conheceu outras casas, percorreu becos descalços, conheceu o morro e teve raiva do asfalto. Viu gente cujos versos precisam gritar para existir. Gente cujos versos cresceram onde as paredes são lonas ou que aprendeu a construí-los sob as estrelas, abrigo único que tinham. A menina voltou algumas vezes para casa, e só então foi que viu serem também suas as memórias trazidas das ruas.
Tento agora descobrir de que é feita a poesia que me escreve e qual é a poesia que tento escrever no mundo. Retomo à pergunta feita um dia por Vicent de Gaulejac: Entre um indivíduo e sua vida quem produz um ao outro? Refaço lugares de memória, caminhos onde deixei algumas palavras e carreguei comigo muitas outras. Estradas feitas de palavras imagens que me ensinaram a sonhar em lançar para o campo e a cidade delicadas sementes de uma visibilidade crítica, capazes de superar um tempo onde a indiferença parece ter tornado a brutalidade banal.
Com os pés sujos de poeira, abrir espaços de sonho para o surgimento de novas poéticas, as quais eu chamaria poéticas do reencontro, que com muito custo ressignificam palavras tão gastas e abandonadas como encanto e utopia.

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