Serviço Residencial Terapêutico: um equipamento público e humanizador da área da Saúde
- Inayá Weijenborg
- 16 de mai. de 2015
- 4 min de leitura

Nas colunas anteriores, abordei sobre a reforma psiquiátrica/luta antimanicomial, o SUS e as propostas do HumanizaSUS, o funcionamento da saúde e da assistência em rede e alguns dispositivos de trabalho, como a clínica ampliada. De maneira geral, tudo isso quer dizer que, para um tratamento na saúde funcionar, devemos considerar o ser humano na sua integralidade: considerar que o adoecimento se produz dentro de um complexo sistema de relações familiares, de relações na comunidade, no trabalho (ou falta dele), de injustiças e intempéries da vida. Por mais que hoje as profissões estejam demasiadamente especializadas, se responsabilizando por partes bem específicas, na saúde e na assistência não dá para enxergar as relações de um modo simples. Para um tratamento funcionar, o responsável deve se atentar a todas as dimensões possíveis da vida humana.
Pensando assim, o tratamento possível na saúde é aquele que tenta garantir o maior trânsito social possível. Afinal, se os fantasmas e as dores se produzem nas relações sociais, é somente nessas relações que eles poderão ser encaminhados. Foi preciso criar e organizar um sistema que desse conta dessa concepção de atenção na saúde; vários equipamentos e políticas surgiram, sendo que alguns deles são os citados anteriormente. Como o sistema de saúde pública no Brasil é bastante complexo, não dá para explicar cada parte em um só texto, e por isso destaco os itens que considero mais significativos. O item do texto de hoje é o Serviço Residencial Terapêutico.
O Serviço Residencial Terapêutico (ou Serviço de Residências Terapêuticas) é constituído por casas disponibilizadas na cidade com o intuito de cumprir a função de uma casa: dar abrigo, uma referência no espaço, a possibilidade de uma rotina, de descanso, de privacidade e de socialização, o asseguramento de cuidados pessoais de alimentação, higiene, vestuário. Essas casas das Residências Terapêuticas têm moradores específicos: preferencialmente, pessoas que passaram muito tempo internadas em hospitais psiquiátricos, perdendo, assim, o contato de convivência em comunidade e, muitas vezes, perdendo o contato familiar também.
Essas medidas de atenção básica humanizada no Brasil são recentes. Essas políticas todas são, em maioria, da década de 1990 e 2000. Por isso, temos hoje ainda muitas pessoas que passaram 10, 20, 30, 40 anos internadas em hospitais psiquiátricos. Há quem passou a maior parte do tempo vivendo em uma ala psiquiátrica. Abandonadas, tratadas como objeto, em condição de exclusão e impedidas de convívio social, não é de se espantar que essas pessoas tenham cronificados os quadros que as levaram a pararem em manicômios, tornando-se ainda mais doentes.
As Residências Terapêuticas propõem uma vida parecida com a de república de estudantes universitários. Com algum critério, os sujeitos que chegam aos serviços de saúde com graves danos à autonomia e socialização são encaminhados para casas que comportam de 1 até 8 pessoas, e cada um tem um papel importante na manutenção e funcionamento da casa. Cada residência deve ser referenciada por um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), já que nessas casas a ideia é ter um acompanhamento menos intensivo. No CAPS, durante todo o período de funcionamento (seja um CAPS que funcione 24 horas por dia, seja um que funcione em horário comercial), existe uma equipe de profissionais da área da saúde, para atendimentos, acompanhamentos, intervenções, serviços contínuos. Nas residências, o enfoque é a reabilitação psicossocial, no sentido de dar condições subjetivas para que os moradores retomem sua autonomia e seu lugar na sociedade – que é uma parte primordial na atenção à saúde. Ou seja, as pessoas moram em suas casas, e, na medida do possível, fazem comida, tomam banho, fazem compras, limpam a casa, vão cortar o cabelo, procurar emprego e círculos sociais para participar.
Por mais que o acompanhamento não seja intensivo, ele existe. De maneira geral, os serviços dos CAPS são ofertados, sendo os moradores sempre convidados a participarem das atividades dos CAPS. Podem existir cuidadores ou monitores nas residências por certo período no dia, para supervisionar as refeições, banhos, limpeza e auxiliar no que for preciso. Cada casa funciona de uma maneira bem específica: em algumas, é necessária maior atenção porque certos moradores são mais dependentes, seja por causa da idade avançada, de doenças crônicas, de perda de autonomia e o que eu chamaria de “sequelas sociais”. Em outras, pode ser que o funcionamento seja mais dinâmico ou independente, sendo que acontece, por vezes, de os próprios moradores cuidarem uns dos outros. Essa atenção voltada ao processo de participação da vida social deve ser pensada de caso em caso, sendo que todo usuário da saúde deve ter um Projeto Terapêutico Singular – um projeto de como a equipe de saúde acredita que é o melhor tratamento para ele. Por isso, é fundamental nesses espaços o trabalho de psicólogos e de acompanhantes terapêuticos, que preconizam as relações interpessoais, o desenvolvimento de recursos subjetivos, o olhar em rede, a construção de autonomia.
Temos no país projetos inovadores e exemplares, que não existem em outros lugares e que são efeitos de uma civilidade marcante. No entanto, como esses projetos são feitos pela e na sociedade, têm um funcionamento dinâmico contínuo; são sistemas vivos, que dizem respeito a um tempo e um local específicos. Eles não podem ser considerados prontos ou findados – temos que construí-los dia a dia. Para isso, é essencial a divulgação de informações, a formação de pessoas, a participação da comunidade na vida política e o envolvimento orgânico nos serviços de saúde. Há muito o que aprimorar e transformar, e muito mais ainda que fiscalizar e requerer que ocorra como o projeto previsto. O que não pode acontecer é um descaso, porque seria o mesmo abandono que sofreu quem foi internado por décadas, sem a responsabilização da sociedade pelos problemas que a própria sociedade cria.
Bibliografia e leitura recomendada
Brasil. Residências terapêuticas: o que são, para que servem. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. Disponível em http://www.ee.usp.br/departamento/nucleo/Ccoms/doc/residenciais%20terapeuticas.pdf. Data de acesso: 11/05/2015.
Inayá Weijenborg
SP, 11 de maio de 2015

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