A Reforma Sanitária e seu aspecto de Revolução
- Inayá Weijenborg
- 11 de jul. de 2015
- 6 min de leitura

A Reforma Sanitária é um movimento que surgiu nos anos 70 em reação à ditadura militar. O documento emblemático e fundamentador da Reforma é o relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. Esse relatório é um dos textos mais bonitos e sinceros que já li, e pode ser acessado aqui. Esse documento é referência na área da saúde e, mesmo sendo da década de 80, é o mais atual possível. Causou impacto na Saúde e foi a base para a formulação do SUS em 1988 (Artigos 196 a 200 da Constituição Federal) e sua especificação em 1990 (Lei 8080/90 e 8142/90).
No relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde, “saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde” (p. 04). Essa noção engloba todos os temas de outras colunas que escrevi aqui – clínica ampliada, acompanhamento terapêutico, HumanizaSUS e outros – e só a partir do conceito de saúde que é descrito no relatório da 8ª Conferência que todas as outras colunas fazem sentido.
Saúde não é um estado – “boa” saúde ou “má saúde”, por mais que utilizemos esses termos no dia-a-dia. Saúde, para quem trabalha nessa área, deve ser entendida como o conjunto de efeitos no corpo e no discurso do indivíduo que tem a vida transpassada por outros diversos corpos e diversos discursos. Discurso pode ser entendido como um encadeamento de ideias que segue uma lógica específica e serve a um propósito, sendo que o funcionamento e a lógica de cada discurso varia de acordo com o sujeito que o produz. O sujeito está atravessado por uma determinada sociedade, determinada historicidade, o que quer dizer que ele está em um contexto. É somente no contexto que podemos entender como se configura a saúde de alguém e o que podemos fazer para melhorar suas condições.
Entender o que afeta o paciente e como o afeta é essencial para se planejar o tratamento. Ficar doente, com dor de cabeça, estressado e com tosse pode estar relacionado a vários motivos, desde uma crise no trabalho até se molhar na chuva. Até aí, é a investigação e as entrevistas psicológicas de sempre. No entanto, se o trabalho está tirando sua possibilidade de subjetivação e o país está com uma taxa alta de desemprego – tirando, assim, as chances de mudar de emprego – e se a chuva que tomou é porque não existe transporte público para a escola na qual se estuda, então, devemos pensar em outra dimensão. Essa dimensão que transcende as paredes do consultório e faz do psicólogo, necessariamente, um articulador.
Quando falei em outra coluna sobre clínica ampliada, era disso que se tratava. No entanto, se a hipótese é de que o paciente precisa urgentemente arranjar outro emprego e na região não existe essa possibilidade, o que se faz? A clínica ampliada é um conceito metodológico, mas o conceito em si não instrumentaliza, não mostra como se deve chegar ao objetivo. Isso não é de se espantar, já que cada caso é um caso e a psicologia exige boa dose de criatividade. Apesar disso, é importante saber onde arranjar instrumentos, ideias, ferramentas para construir sua atuação profissional. E onde é? No social, na vida política da qual não tem como se isentar. Não tem como dizer “ah, não gosto de política, não vou me envolver com isso”, porque não fazer nada já é uma postura política. Aliás, nem tem como não fazer nada; no máximo se atrapalha o movimento de quem é engajado. Se não dá para ficar em cima do muro, o que resta é participar e se posicionar. Tentar conhecer o que está se passando no país, na região; quais os feitos e seus efeitos, quais as mobilizações que já tem, quais são os problemas apontados e, depois, pensar o que você acha disso, o que acha que tem que melhorar, o que é bom e deveria permanecer e o que você poderia fazer.
Pensar a vida social de forma crítica é essencial. Acontece que os grandes problemas precisam de grandes movimentos para serem resolvidos, e, é claro, isso não se faz sozinho. Para propor encaminhamentos de ordem pública, fazemos em público e com o público: para pensar o que fazer com aquele paciente que precisa de outro emprego, precisamos dialogar na esfera das políticas públicas, de movimentos de geração de renda, criar espaços para que se participe da sociedade através do trabalho. Como disse, cada caso é um caso, e o que vai ser criado a partir daí vai depender das condições que cada pessoa tem. O importante é frisar que as condições nós obtemos aí, em discussões políticas e ações de reestruturação da sociedade.
Pode ser que esse paciente não consiga já esse emprego que tanto precisa (e isso devemos suportar), mas se começarmos já nosso ativismo, pode ser que outras pessoas tenham condições dignas de vida. Essas condições, a princípio, são obrigação do Estado; não é o psicólogo que vai comprar uma casa de alvenaria para o paciente, mas o psicólogo deve zelar para que o Estado cumpra sua função, assim como qualquer outro cidadão deve fazer, inclusive o próprio paciente. No relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde, consta que saúde está “no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas” (p. 04). A sociedade não está aí pronta para ser utilizada; assim como o sujeito, ela se faz e é refeita a todo instante, e somos nós que a fazemos.
Tem um vídeo muito legal, que, embora longo, merece ser assistido. Os primeiros minutos já dão uma boa noção do que se trata a Reforma Sanitária e como ela engloba todas essas questões particulares e universais. No vídeo, cujo link vou deixar abaixo, Jairnilson Paim fala que “projetos para a Saúde [...] passam pela Reforma Agrária, Reforma Urbana, Reforma Universitária e Reforma Tributária”. É possível viver dignamente em um país que não tem vagas universitárias suficientes? Que dificulta o acesso à cidade, seja por causa de transporte público, por causa da especulação imobiliária, por causa do preço de um terreno, por causa da discriminação social? O intuito não é deixar todo mundo feliz, até porque isso é impossível. O intuito é dar condições para que se exerça a humanidade. Essas condições estão descritas nos Direitos Fundamentais estabelecidos em Constituição. Garantir as condições mínimas de sobrevivência não significa extinguir os males do mundo, deixar todos felizes e acabar com a psicologia; se fosse assim, gente rica não iria a psicólogo. Garantir as condições mínimas para exercer a humanidade faz parte de um projeto de sociedade, faz parte da vida política.
Ao nos afastar dessas questões e vê-las em conjunto, uma do lado da outra, podemos perceber que não estamos falando de nada menos do que revolução. Não é só reformar, arrumar, colocar algo em cima e tapar os buracos: é retirar tudo o que está de errado para planejar algo estruturalmente novo. E Reforma Sanitária exige mudanças estruturais em vários setores da sociedade, não só ao que compete exclusivamente à área da Saúde. Revolução não tem nada a ver com implantar a desordem, deixar todo mundo pobre e retroceder à Idade da Pedra. Revolução significa garantir esses direitos fundamentais a todas as pessoas, o que inevitavelmente resultará em diminuição das injustiças sociais. Por isso que se fala que a Reforma Sanitária ainda está acontecendo; ela começou nos anos 80, alcançou várias conquistas mas ainda não acabou. Resta a todos nós, profissionais, estudantes, famílias, população de maneira geral, participar dessa luta para conseguir o que por de nós é direito e que todo mundo quer para si: dignidade.
Segue o vídeo de Jairnilson que mencionei, através do qual é possível encontrar os outros dois vídeos que seguem esse: https://www.youtube.com/watch?t=862&v=PRssz1_wcEU
Inayá Weijenborg
SP, 06 de julho de 2015
Referências
BRASIL, Ministério da Saúde. 8ª Conferência Nacional de Saúde. In: Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 1986.
Reforma Sanitária: trajetória e rumos do SUS – Jairnilson Paim. Disponibilizado por CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Rio de Janeiro/RJ em janeiro de 2015 . Disponível em <https://www.youtube.com/watch?t=862&v=PRssz1_wcEU>. Acesso em: 06 de julho de 2015.

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