O porquê de sermos Charlie.
- redepsicoterapias
- 19 de fev. de 2015
- 3 min de leitura
No artigo anterior, escrito ainda no calor do momento e das emoções, redigi o “ Je suis Charlie”, onde refleti sobre o atentado ao jornal francês Charlie Hebdo.
Sentia que antes de tudo, assim como finalizei o artigo, tratava-se de um momento de “refletir. Refletir e solidarizar”.
A reflexão (honesta!) é o esforço de tirar os pensamentos de rígidos mapas mentais e a desconstruir os mecanismos tacanhos, egoístas e preconceituosos que os sustentam. Já a solidariedade nos convida à superação dos horrores e pesadelos a partir da vivência da dor e angústia do outro, seja ele o “atirador” ou “vítima”.
Quando falamos na generalização do mal-estar da humanidade, falamos de um sintoma, neste caso a experiência em escala global da aridez emocional e despedaçamento das experiências e laços que nos tornam humanos.
No caso da revista francesa em especial, uma linha de pensamento fria e pragmática certamente nos conduziria a ideia de transgressão de limites, como se uma conexão puramente causal estivesse como um “boom” para o término de uma coexistência pacífica entre os europeus e os “outros”. Em primeiro plano as charges, em segundo as mortes. Uma parcela do pensamento polarizado, como tenho visto culpa Wolinkski e seus colegas de redação pelo atentado, outra parcela busca os culpados criminalizando e generalizando os islâmicos a partir de um código irracional implacável.
Como dissemos acima, apesar da experiência concreta dos atentados e seus impactos para além da cidade de Paris, na política internacional e nas relações, seus efeitos psicológicos, como um sintoma, devem ser desvelado, para que seja urgente uma reavaliação daquilo que entendemos como religião, política, oportunidades de emancipação e claro, colocar luz e empatia onde antes projetávamos nossas sombras.
“ Je suis Charlie” é também um convite para acordar do anestesiamento e apatia emocional. A ocupação predatória pelas potências americanas e europeias nos países africanos e latinos dizimando a cultura local e fomentando interesses escravistas de dominação é motivo de nossa maior preocupação. Como não se esquecer da barbárie do Boko Haram na Nigéria, onde 276 mulheres, entre crianças e adolescentes, foram estupradas e mortas. O genocídio diário da população negra no Brasil... Os abusos nos hospitais psiquiátricos, as mulheres marcadas pela violência que silencia a fala e a vida... Como não se esquecer dos milhões de animais abatidos diariamente para satisfazer nossa fome de crueldade.
Situações como as citadas acima e tantas outras devem servir para sensibilizar nossos corações e mobilizar-nos para um novo projeto de mundo e para a reforma e aquisição de novas práticas que constituirão um novo modelo de sociedade, principalmente pautados pelo contraponto aos valores e forças dominantes (e falhos) do atual projeto capitalista.
A Psicologia nos ensina que antes de um momento importante se anuncia uma crise, um movimento de busca a novos valores e identidade. Para que deste movimento dinâmico sejam preservados seus caracteres mais genuínos de desenvolvimento, mais uma vez asseguramos a necessidade de iluminar nossos maiores medos, fraquezas e preconceitos. A iluminação das sombras, pessoais e coletivas, faz com que enxerguemos novos caminhos e possibilidades, além de carregar de sentido esta busca.
Esperamos que neste momento de turbulência e ansiedade também sejam geradas, mesmo que timidamente, novas redes de segurança, coletividade e integração. Esperamos, que “Je suis Charlie” não seja apenas uma hashtag ou um fato isolado mediante o bombardeio midiático.
Sim. Sempre serão tempos de refletir e solidarizar.
* Thiago Domingues é natural de São Bernardo do Campo-SP. Funcionário público trabalha na Secretaria de Cultura de sua cidade com o desenvolvimento de políticas de leitura. Psicólogo e poeta, acredita e trabalha em prol da emancipação humana pelo cultivo da força da palavra e nos demais acompanhamentos psíquicos da vida humana como a beleza, o cuidado, a cooperação e a poiesis para um desenvolvimento pleno das capacidades existenciais. Escreve às quintas-feiras nesta sessão sobre assuntos relacionados ao autoconhecimento, desenvolvimento e reflexão pessoal.
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