Água viva: uma breve conversa sobre psicologia e crise ambiental
- Thiago Domingues
- 2 de abr. de 2015
- 3 min de leitura

Lembro que a disciplina era “práticas emergentes em psicologia”. A professora, carinhosamente apelidada de “Pinguim”, havia solicitado um trabalho para o fechamento do semestre.
Como é muito comum em estudantes (no meu caso até os dias atuais) alimentava rotineiramente o hábito de frequentar sebos, que são espaços com a mesma proposta das livrarias, porém, comprometidos com a circulação de material (livros, revistas, DVDs, etc) a preços mais “convidativos”.
Eis que entre uma estante e outra, uma revista Le Monde Diplomatique Brasil caiu em meus braços (por módicos R$ 1,00). Uma das matérias da edição (a revista era de 2007, o fato aqui narrado aconteceu em 2012) destacava o esforço da campanha Y Ikatu Xingu realizada na cabeceira do rio Xingu, no belíssimo Mato Grosso, pela proteção e recuperação de nascentes e das matas ciliares da região a partir de um esforço conjunto e comunitário dos diversos atores sociais, como índios, pequenos agricultores e lideranças municipais. Creio que a sabedoria indígena ali presente contribuiu favoravelmente pela articulação simbólica dos recursos naturais a partir de um desenvolvimento regional pautado em iniciativas de conservação socioambientais.
A leitura do artigo foi um insight para o meu trabalho. Defini a natureza, mais especificamente a água, como tema do meu trabalho. Em um recorte específico, busquei problematizar a seguinte questão: quais as contribuições do psicólogo para uma ética ecocêntrica?
Para o desenvolvimento do trabalho, encontrei na psicologia de Carl Gustav Jung o conceito de individuação. O processo de individuação seria compreendido a partir do desenvolvimento e manifestação de uma ética do cuidar. Nas palavras de Leonardo Boff, pensador que articulou o pensamento de Jung com uma orientação ecocêntrica, a individuação estaria relacionada com “ a recuperação do núcleo valorativo emocional do ser humano ante a natureza, desenvolvendo a capacidade de convivência e reforçando as energias psíquicas positivas do ser humano”.
No livro '' Ecologia, Mundialização e Espiritualidade”, Leonardo Boff resgata a tradição de nomes como Francisco de Assis, Albert Schweitzer e Chico Mendes para o desabrochar de uma ética que colocasse em questionamento os ideais burgueses do “crescimento ilimitado” e da ferocidade esmagadora da depredação da natureza, criando uma comunidade interdependente de integridade, respeito e solidariedade.
Pensando o capitalismo enquanto um sistema de regulação social e psíquica, é o desejo a força motor do consumo. Ambos devem ser retroalimentados, já que a virtude deste homem unidimensional, como tão bem colocou Marcuse, é o empobrecimento e recalque de dimensões que colocam o ser humano como pertencente à natureza e não apenas como um veículo para suas satisfações. É neste sentido que está, não apenas o compromisso ético do psicólogo, mas também o comprometimento com o exercício da cidadania para um desenvolvimento civilizacional responsável.
Estes ideais também devem confrontar interesses e ajudar na veiculação de informações relevantes para desconstruir a constante camada de alienação sobreposta aos brasileiros. Segundo o jornal Brasil de Fato (12 a 18 de Março de 2015) no estado de São Paulo, a Sabesp reserva para grandes empresas 24 bilhões de litros de água tratada e potável por ano, o suficiente para abastecer por um ano 101 mil famílias. Estas informações não são veiculadas na grande mídia, apenas interessada em culpabilizar de maneira individual a crise hídrica que assolou o maior estado do país.
A “ Década da Água para a Vida” estabelecida pela ONU nos mostra que mais de 748 milhões de pessoas não têm acesso a água potável hoje no mundo e a grande mídia quer fazer você economizar sua água do banho enquanto esconde que a fabricação de uma calça jeans pode gastar até 10 mil litros de água ou que uma grande fábrica de cosméticos “ecologicamente correta” gasta mais de 290 milhões de água tratada por ano! Os exemplos são vários e ilustram as contradições envolvendo grandes interesses corporativos e o meio ambiente.
Como nos alerta Boaventura de Sousa Santos em “ A crítica da razão indolente”, um paradigma emergente só pode vir a partir de uma especulação alicerçada nos sinais de esgotamento que o paradigma atual nos demonstra.
É nesse sentido que o psicólogo deve construir sua participação nos diversos segmentos de proteção social, mas também garantir o comprometimento de informações transparentes e relações igualitárias. Fazendo parte de coletivos, movimentos sociais e até mesmo individualmente, pautar e orientar políticas públicas e relações cotidianas que garantam uma sociedade mais justa, alimentando a promoção da vida e a solidariedade nas relações intersubjetivas nos diversos níveis existentes no planeta.
Ah! Água viva é o nome de um belíssimo livro de Clarice Lispector.

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